Não há mais bons modos no debate público. Nas comissões do Congresso, nas redes sociais, nos programas de debate na televisão, por toda parte o clima é tenso, o tom é virulento, o discurso é agressivo. No mundo todo, qualquer discordância de ideias se transforma quase espontaneamente em ataque pessoal. Sarcasmo, desdém, humor hostil, olhares revirados, tudo leva ao confronto, ao conflito, à raiva. A polarização se alimenta do ódio mútuo entre grupos incapazes de manter um debate civilizado. Não há respeito, não há consideração, não há um mínimo de educação. “Nada diz respeito à discordância honesta; tudo se torna um ataque à falta de decência humana básica do interlocutor”, diz o economista e acadêmico Arthur Brooks em Love your enemies ( Ame seus inimigos ), um guia para tentarmos resgatar um mínimo de civilidade.
Brooks oferece uma análise perspicaz dos mecanismos que nos trouxeram até aqui. Não se trata, para ele, de um ambiente cuja eletricidade derive da raiva. A ira está lá, é certo, mas a impossibilidade de diálogo tem outra origem: o desprezo. “Enquanto a raiva tenta trazer alguém de volta ao debate, o desprezo busca exilar. Tenta zombar, envergonhar e excluir permanentemente das relações por meio da humilhação, da depreciação, do desdém”, afirma. “Enquanto a raiva diz ‘me importo com isso’, o desprezo proclama ‘você me dá nojo, não é digno de preocupação’.” Funciona como um vício. Quanto mais você sente desprezo por “eles”, mais gente como “eles” enxerga por aí. Podem ser os “esquerdistas”, os “direitistas”, os “comunistas”, os “fascistas”, os “petistas”, os “bolsonaristas” ou qualquer grupo tido como encarnação do mal para quem se vê como representante inequívoco do bem.
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É um cenário que, tanto à direita quanto à esquerda, favorece a emergência de lideranças divisivas, que pregam a exclusão e a segregação de vozes divergentes. Afirmam que os vizinhos de quem discordamos politicamente destruíram o país, que diferenças ideológicas não são apenas opiniões diferentes, mas “refletem depravação moral”, que “nosso lado” deve aniquilar o outro, mesmo que para isso seja preciso sufocá-lo. “À medida que o desprezo mútuo cresce, mais e mais pessoas se recusam a trabalhar juntas”, diz Brooks. “Tornam-se tão ressentidas que adotam a atitude: ‘Não vou ajudar este f.d.p.’.” O resultado para as democracias é uma lástima.
Embora seja impecável no diagnóstico, Brooks é ingênuo na resposta que propõe. Ele defende um movimento que tente substituir o desprezo pelo amor no debate público, num sentido que vai além do mero respeito ou da tolerância. É preciso, diz ele, tratar os outros com “amor e respeito, mesmo quando é difícil”, nunca com desprezo, “mesmo que mereçam”. O amor, no entender dele, não é incompatível com a discordância. “Tendemos a demonizar quem pensa diferente de nós, sem nem mesmo gastar um tempo e perguntar como chegaram a tal ponto.” Brooks acredita que devemos tentar encontrar gente de quem discordamos, ouvi-los, tratá-los com respeito e amor, travar relações de amizade fundadas em valores comuns, não em divergências políticas. “O resto decorrerá naturalmente.”
Brooks é um conservador católico que já tocou trompa numa orquestra em Barcelona, casou-se com uma espanhola com quem teve dois filhos e adotou uma filha (nascida na China), chefiou por anos o American Enterprise Institute e foi buscar inspiração espiritual no Dalai-Lama, de quem se tornou amigo. Sua história pessoal é inspiradora, como várias outras narradas no livro. Mas nem todos são capazes de superar as próprias frustrações para transformá-las em amor. O conflito viciante das redes sociais sufoca qualquer tentativa de discordância civilizada. Enquanto elas forem a principal arma e veículo do debate público, o ódio e a estupidez predominarão sobre a decência admirável de gente como Brooks.
Fonte: “Época”, 11/04/2019