Quando venceu a disputa pela liderança do Partido Conservador, o premiê britânico, Boris Johnson, afirmou que preferia estar “morto numa trincheira” a deixar o Reino Unido permanecer na União Europeia (UE) depois do dia 31 de outubro, a data então estipulada para o Brexit.
Pois o dia de hoje chegará ao fim com Boris vivo e o Brexit novamente adiado, desta vez para 31 de janeiro. Na última reviravolta, Boris conseguiu enfim na última terça-feira uma vitória no Parlamento, quando reuniu, na quarta tentativa de votação, a maioria de dois terços necessária para aprovar a realização de novas eleições, marcadas para 12 de dezembro (pela primeira vez desde 1923, o Reino Unido irá às urnas em pleno inverno).
Depois da manobra, julgada ilegal, para suspender a sessão do Parlamento pelo período inédito de cinco semanas; depois de arriscar o catastrófico divórcio sem acordo; depois de arrancar da UE um novo acordo na undécima hora (na prática criando uma fronteira interna no país, entre Grã-Bretanha e Irlanda do Norte); depois de, incapaz de reunir apoio para aprová-lo, ver-se obrigado a pedir novo adiamento do Brexit; depois de tudo isso, Boris decidiu deixar de lado o próprio acordo para apostar nas eleições.
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Como sua antecessora, Theresa May, fez em 2017, ele acredita que emergirá das urnas com uma maioria sólida para concluir o divórcio da UE nos próprios termos. Com May deu errado. Apesar de as pesquisas darem inicialmente uma vantagem em torno de 20 pontos aos conservadores, ela perdeu a frágil maioria parlamentar que tinha. Foi forçada, para somar a sua base os dez votos dos unionistas norte-irlandeses, a firmar com eles não uma coalizão formal, mas um “acordo de confiança e oferta”.
Boris traiu os unionistas ao fechar o novo acordo com a UE, expulsou do partido os 21 parlamentares que votaram em favor de impor ao premiê a obrigação de adiar o Brexit, caso o Parlamento não tivesse aprovado um acordo até o último dia 19, e não conseguiu simplesmente obter nenhuma vitória parlamentar até a noite de terça-feira. Será que ele conquistará uma maioria sólida, capaz de acabar com a novela do Brexit, ou terá destino similar ao de May?
Novamente, as pesquisas dão vantagens aos conservadores. Na média calculada pela Economist, eles têm uma vantagem de 13 pontos sobre os trabalhistas de Jeremy Corbyn (38% a 25%). Embora favoritos, o sistema eleitoral britânico e o quadro político levantam dúvidas.
May tinha 20 pontos de vantagem antes da eleição, mas saiu sem maioria em virtude da fragmentação da votação. Pela regra eleitoral, vence em cada distrito o parlamentar que obtiver mais votos, mesmo que não chegue perto dos 50%. Quanto mais divisão, mais favorecidos os candidatos de partidos menores. Como a novela do Brexit fez sangrar tanto trabalhistas quanto conservadores, o resultado é incerto.
No caso trabalhista, as perdas foram maiores. As dificuldades de adotar uma posição consistente em favor da permanência da UE – ou, no mínimo, de um novo referendo popular para aprovar qualquer acordo fechado com os europeus – transformaram os liberais-democratas na legenda anti-Brexit de fato (eles têm 17 pontos na média da Economist). Também houve perdas resultantes da tolerância de Corbyn com o antissemitismo institucional no partido, com a deserção de parlamentares históricos que concorrerão como independentes.
Há, por fim, a resistência ao esquerdismo radical de Corbyn, que tentará transformar a campanha numa luta contra o establishment econômico e político – e falar de Brexit o mínimo necessário. Em várias áreas industriais do Nordeste, majoritariamente favoráveis ao divórcio da UE, os eleitores trabalhistas serão acossados por Boris, aquele que chegou mais perto de realizar a promessa do Brexit.
Para os conservadores, o cenário também é incerto. Com sua retórica, Boris conseguiu resgatar a ala do partido partidária do Brexit em quaisquer condições – “vivo ou morto”–, alijada por May. Reduziu a força eleitoral do Partido do Brexit, de Nigel Farage, que venceu as eleições europeias de maio empurrando os conservadores para a vergonhosa quinta posição.
O preço foi o isolamento dos conservadores pró-Europa dentro do partido. Boris fez um gesto conciliador ao readmitir 10 dos 21 parlamentares que expulsara por ter votado para evitar o Brexit sem acordo a todo o custo. Também demonstrou, com seu acordo, que seu cenário preferido era mesmo o divórcio ordenado. Mesmo assim, também deverá perder votos para os liberais-democratas e para as agremiações nacionais, tanto na Escócia quanto na Irlanda do Norte, majoritariamente contrárias ao Brexit.
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Tanto o Partido Unionista Democrático (DUP), traído por Boris, quanto o Partido Escocês Nacional (SNP) farão campanha para conquistar o conservador descontente (a principal líder conservadora escocesa deixou o partido). Até mesmo no País de Gales há uma legenda nacionalista que promete crescer e esvaziar o bastião histórico dos Tories. Há ainda Farage, o radical favorável ao divórcio sem acordo, acusando Boris de traição e de não cumprir a promessa de Brexit.
Trabalhistas e conservadores sabem que um novo Parlamento é a única forma de romper o impasse que hoje torna inviável formar maioria favorável a qualquer cenário de Brexit (leia mais aqui). Boris acredita nas sondagens que projetam uma vitória com vantagem de 58 das 650 cadeiras. Ainda há, contudo, as cinco semanas de campanha determinadas pela lei eleitoral britânica. E, se a interminável novela do Brexit nos ensinou algo até agora, foi a ter mais ceticismo e menos confiança em qualquer tipo de previsão.
Fonte: “G1”, 31/10/2019