Está ficando cada vez mais claro: em vez de ajustar a longo prazo os gastos do governo ao tamanho da produção brasileira, como previa o projeto intitulado Ponte para o Futuro, continua o duro processo de ajustamento da sociedade brasileira aos gastos de seus governos.
Mudou, no entanto, o instrumento.
No tempo das receitas crescentes, nas duas décadas anteriores a 2014, este ajuste se fazia com a captura pelo governo, via impostos maiores, de fatias crescentes da riqueza acrescentada a cada ano na vida nacional.
A partir da recessão, no entanto, o instrumento central de ajuste passou a ser a captura da poupança dos cidadãos através de endividamento do governo federal – poupança esta que ficou “disponível” graças à violenta queda na atividade.
Nos dois períodos, o mesmo resultado central: os gastos do governo são a variável independente, a situação da sociedade aquela que tem de ser ajustada.
Agora que os limites do endividamento estão sendo atingidos, pensa-se em nova etapa para arrancar da sociedade mais dinheiro para manter a roda dos gastos crescentes do governo: aumentar os impostos sobre a economia depauperada.
O retrospecto de longo prazo é favorável aos recebedores das despesas do governo – já as perspectivas para adiante são tenebrosas para os pagadores da conta.
Colocado neste último lado da disputa distributiva, tenho gemido como posso. Quase dois anos atrás, quando ainda havia otimismo entre os construtores do Ponte para o Futuro, deixei registradas minhas dúvidas sobre os resultados da engenharia em dois artigos publicados no Millenium, intitulados “Abre-te Sésamo – Quero sair!!”.
A pergunta central sobre o futuro ali posta era singela: os autores do plano tinham na cabeça um ajuste a longo prazo das despesas do governo, comandado a partir do Orçamento – e a principal medida, o teto para os gastos públicos, foi aprovada pelo Congresso Nacional assim que o atual presidente assumiu.
Contrapusera a este modo de pensar a constatação de que a parte maior das despesas do governo não está submetida ao controle dos parlamentares que votam o Orçamento, nem mesmo às leis que naquela casa se votam. O fato é óbvio, sua forte raiz histórica – tema dos artigos – nem tanto. Trata-se de uma questão de soberania, não de política. Repetindo o argumento central dos artigos de 2015:
“90% do gasto público é algo que flutua numa esfera etérea, acima do controle da racionalidade econômica do equilíbrio orçamentário, acima do controle do sistema político expresso na confecção da lei anual de receitas e despesas, acima da capacidade dos cidadãos de querer gastos públicos sob controle do soberano popular”.
Faço aquilo que um historiador pode fazer: quase dois anos de sofrimentos passados, registro novamente a dúvida sobre quem ajusta e quem é ajustado. O soberano popular, através do Orçamento, ou os detentores de “direitos adquiridos” expressos na Constituição e postos acima desta lei?
Para quem quiser rever algo sobre a espécie de soberania destes detentores, capaz de ser imposta por cima das leis orçamentárias, sugiro a releitura dos artigos.
A diferença de soberanias mostrada pela história foi ignorada no plano. Economistas – inclusive aqueles que fizeram o Ponte para o Futuro – pensam o equilíbrio macroeconômico como resultado de uma racionalidade que se exprime apenas no Orçamento e nas contas públicas. Supõem que todos os agentes estão igualmente submetidos à lei e tendem a respeitar esta racionalidade. Por isso pensam em termos de Ajuste Fiscal, controle do gasto público.
Com tal lógica assustam-se com certos fenômenos, como nesta constatação do artigo de Alexandre Schwartsman na “Folha de S. Paulo”, ontem:
“A reivindicação salarial do Ministério Público, 16,7% em meio à maior crise fiscal do país, não é só sintoma de descolamento da realidade; trata-se de um tapa na cara da população que, ao contrário dos procuradores, recebe baixos salários, corre risco de desemprego e não tem direito à aposentadoria integral bancada pelo Tesouro Nacional. Enquanto cada corporação busca se proteger (…) as finanças públicas pioram a cada dia”.
O modo de pensar as reinvindicações dos procuradores, como sendo “descolamento da realidade”, supõe uma racionalidade e um delírio. Uma lógica que parte do tamanho dos recursos disponíveis para sua distribuição, a ser feita por um critério único, a que todos devem se submeter, e pelo qual quem está em boa situação deveria moderar seus desejos em função do bem comum. Uma igualdade entre os cidadãos e sua união em torno da racionalidade do ajuste fiscal – o sonho da Ponte para o Futuro.
Mais realista e racional talvez seja, no entanto, a descrição de Delfim Netto para o mesmo processo, no mesmo jornal:
“Tudo foi sacrificado em favor de despesas de produtividade duvidosa, como os exagerados salários da alta administração pública e suas generosas aposentadorias. Os trabalhadores do setor privado que a sustentam perderam o emprego ou viram reduzir-se seu salário enquanto o corporativismo ‘extrativista’, blindado contra as flutuações da conjuntura, continua a ‘exigir’ mais aumentos”.
Aqui não há racionais e delirantes. Cada parte pensa por uma lógica, cada um defende seu lugar no conflito – que é tudo menos uma disputa civilizada de iguais irmanados em torno do objetivo do equilíbrio fiscal. São partes estruturalmente desiguais, cada uma com seu interesse. O éden da proteção legal de ganhos e a danação da vida nos ciclos dos mercados – que valem igualmente para patrões e empregados, diga-se de passagem. Para uns, os reajustes definidos em lei; para outros os ajustes.
Assim, no lugar da ponte, o abismo. Pela lei a sociedade fica obrigada a se ajustar aos gastos crescentes do governo – acima da vontade do Executivo ou do Parlamento, em tese subordinados ao soberano popular. Há mais soberanos no ar além daquele de carreira.
Pensando nisso, escrevo para registrar um magro consolo de historiador: quem sabe os economistas comecem a perceber que nem todos os brasileiros são iguais perante à lei – e portanto não estão submetidos às mesmas normas de ajuste. Mais ainda, que privilegiados não querem ser iguais nem serem ajustados às flutuações da economia. Podem ser diferentes, porque assim a lei o determina. Defendem a diferença.
E me repergunto: neste contexto de dupla soberania, que sentido tem continuar o ajuste da sociedade?
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