Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, os administradores estaduais passaram a não poder mais deixar “restos a pagar” para os mandatos seguintes sem o respectivo numerário em caixa, sob pena de punições pesadas. Os formuladores se esqueceram, contudo, de excetuar dessa regra mudanças de mandato fortemente atípicas, como a atual. Além da deterioração progressiva das contas estaduais, que venho acompanhando há algum tempo, os atuais administradores tiveram de enfrentar, desde 2015, os efeitos devastadores da maior recessão da história do país sobre a arrecadação tributária, em cima de uma herança ruim de vários antecessores. Calculo que a receita estadual perdida foi da ordem de R$ 288 bilhões em 2015-17, algo equivalente à metade da receita de 2014, a preços de 2017, contra o que teria sido uma situação normal.
No Rio, somou-se ainda a desabada do preço externo do petróleo, que destruiu a importante receita de royalties. E o conjunto dos estados teve de enfrentar, em adição, a gestão mais hostil de que me lembro ter existido no Ministério da Fazenda, que se impôs sobre a fraqueza inerente à administração Temer. Enquanto a Fazenda fazia vista grossa aos desequilíbrios financeiros do seu próprio quintal (basta ver o gigantismo dos atuais deficits primários, basicamente financiados por emissão monetária), passou a rechaçar qualquer tipo de alívio financeiro dos demais entes. À boca pequena, a alegação era de que os administradores estaduais, com raras exceções, são mesmo irresponsáveis fiscalmente.
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Mas, antes de considerar a recessão feroz, são dois os problemas estruturais básicos que os administradores enfrentam. Se somarmos todas as fatias do orçamento sobre as quais praticamente detêm quase nenhum comando, chegou-se, como no caso de Minas Gerais, a 65% da receita líquida orçamentária total em 2015. Só que os restantes 35% precisariam ser capazes de bancar os “demais custeios” das secretarias não prioritárias, os investimentos em infraestrutura (cuja obrigação de gastar foi transferida implicitamente da União para os entes subnacionais com a extinção dos “impostos únicos” em 1988), e, por último, a previdência dos servidores. Só que, em Minas, o conjunto desses itens somou 50% da receita naquele ano, faltando 15% da receita para fechar a conta.
A situação só não se mostrou pior ao longo dos últimos anos, porque: 1) os estados conseguiram identificar receitas extraordinárias (ainda que temporárias); 2) numa certa altura, lograram obter, graças ao apoio do STF, uma rolagem adicional de parte do serviço da dívida com a União, que deu algum alívio para os mais endividados; e 3) mais recentemente, aprovaram um programa de recuperação fiscal, que, até agora, só conseguiu minorar as dores de apenas um caso, o Rio, que, mesmo assim, ainda tem acertos relevantes de atrasados financeiros por fazer.
Assim, diante da rigidez orçamentária, especialmente na Previdência e nos prioritários gastos em educação, saúde, segurança, poderes autônomos (isto é, dos gastos dos “donos do orçamento”) e do serviço da dívida, só resta aos gestores reduzir ao mínimo imaginável os investimentos (porque é onde há menor resistência política), e, por último, os demais gastos correntes das áreas fora da seara dos “donos do orçamento”, mesmo sabendo que, ao final, sobrarão deficits gigantescos e um elevado volume de atrasados, como acima explicado no caso de Minas.
Quanto ao gasto na previdência dos servidores, este tem subido muito nos últimos anos. As projeções sugerem que continuarão a crescer de forma intensa nos próximos 20 a 30 anos, ao longo dos quais se acentuarão as causas relacionadas com o envelhecimento da população. Algum alívio só virá a partir do momento em que fizerem efeito pleno medidas de ajuste aprovadas há algum tempo, como a introdução da idade mínima, o fim da integralidade das aposentadorias e da paridade dos reajustes entre os aposentados e os ativos, além da implantação da previdência complementar. Até lá, os deficits continuarão subindo e causando estragos.
Considerando a força política das corporações de servidores, onde já se teme abertamente que seu regime previdenciário tenha perdido sustentabilidade, a saída é conseguir apoio dos seus representantes para o esforço de equacionamento (ou eliminação) dos passivos previdenciários dos respectivos regimes. Isso deverá envolver mudanças de legislação e ações governamentais específicas (como o aporte de ativos e outros recebíveis nos fundos de pensão que forem criados), mas abrirá espaço significativo nos orçamentos estaduais.
E, como boa parte dos deficits orçamentários desde 2015 tem muito a ver com previdência, os atrasos de pagamentos acumulados até agora poderiam ser equacionados até o fim de 2018 como parte do processo de reorganização previdenciária acima citado, com a chancela do ministério público e do tribunal de contas estadual.
Fonte: “Correio Braziliense”, 16/10/2018