No artigo “A crise vista sob outro ângulo”, publicado na “Conjuntura Econômica” em março de 2009, analiso a recessão de 2008 sob uma ótica inexplorada naquela época pelos observadores mundiais. O mencionado artigo aponta o processo de concentração social de renda nos Estados Unidos como raiz do cataclisma sofrido pela economia desse e de outros países.
Pois bem; agora afirmo que o padrão modesto da atual retomada do crescimento do PIB americano também provém da persistência de contrastes entre a evolução da renda nos diversos segmentos da sociedade local.
Em 2008, a extrema desregulação do sistema financeiro dos Estados Unidos ajudou a forjar uma euforia econômica cuja fragilidade manteve-se desapercebida pela maioria absoluta do establishment local e internacional. No entanto, era inevitável a implosão do mirabolante esquema de financiamento montado para insuflar o mercado imobiliário, pois sustentava-se no ascendente endividamento de famílias cuja renda real encontrava-se estagnada ou declinante. Assim, o gigantesco índice de inadimplência ocorrido desencadeou a crise bancária.
Hoje os Estados Unidos se orgulham do fato de usufruir do melhor desempenho econômico entre os países mais avançados. Porém, seu crescimento poderia ser bastante superior ao atual se políticas receptivas à equidade tivessem sido implementadas nos últimos sete anos. Tendo em vista que a propensão marginal a consumir dos grupos menos favorecidos é elevada, o incremento acentuado de sua renda provocaria uma expansão do consumo total superior ao presentemente constatado, resultando em estímulos ao investimento e ao crescimento do PIB. Porém, os dados mais recentes disponíveis demonstram que a discrepância social permanece insubmissa.
De acordo com o U.S. Census Bureau, a inequidade aumentou durante a recuperação da economia registrada nos anos recentes e, apesar do declínio do desemprego, analistas estimam que em 2015 manteve essa tendência. Entre 2008 e 2013 a renda real dos 10% mais ricos cresceu em 10,6%, enquanto a dos 10% mais pobres declinou em 3,2%. Em 2007 12,0% dos habitantes do país viviam sob condição de pobreza, índice que subiu para 14,8% em 2014.
Sob uma perspectiva de longo prazo, constata-se que o distanciamento entre os patamares de bem estar vem avançando desde os anos 80. Em 1982 o 1% mais rico da população recebia 10,8% da renda total, passando para 22,5% em 2012. Durante o mesmo período a renda dos 90% menos afortunados retrocedeu de 64,0% para 49,7% do total.
Essencial para inferir o comportamento da desigualdade, a comparação mais recente entre as trajetórias da produtividade da economia e do valor médio dos menores salários (60% da massa salarial) indica aumentos de 243,1% e 108,9%, respectivamente, de 1970 a 2010. Isto é, aos trabalhadores de remunerações inferiores coube quinhão insatisfatório dos ganhos auferidos pelos incrementos de produtividade.
Segundo o “US Bureau of Labor Statistics”, os contratos de trabalho referentes aos assalariados de menores remunerações contêm regras mais restritivas, danificando a qualidade de vida desses empregados. Comparando benefícios desfrutados entre os 25% mais baixos e os 25% mais altos níveis de assalariados constata-se nítida desvantagem do primeiro grupo em termos de aposentadoria, férias, assistência médica proporcionada pelos empregadores, licenças de saúde e de maternidade e remunerações extras (dividendos, bonificações, etc.). Por outro lado, o enfraquecimento dos sindicatos provocou perda do poder de barganha dos assalariados
Em paralelo ao processo concentrador, as camadas menos providas da população enfrentam fatores que conspiram contra sua mobilidade social, tais como: a) inexistência de um sistema gratuito e universal de seguridade social, incluindo atendimento médico; b) elevado custo das universidades públicas dificultando o acesso dos jovens de menor poder aquisitivo; d) ausência de legislação que obrigue as empresas a liberar seus empregados para votar, quando as eleições ocorrem em dia de semana, afetando proporcionalmente mais os ocupantes de funções subalternas, impedindo-os de influenciar o resultado eleitoral.
Além de ser modesta, a presente recuperação da economia americana é vulnerável a recaídas pois carece do alicerce que proporcionariam a ascensão financeira das classes média e baixa e, também, a expansão do atual nível de investimentos em setores envelhecidos. Em outras palavras: o alcance de prosperidade substancial e duradoura depende do incremento no poder de compra dos excluídos do top social e, também, da ampliação dos investimentos no rejuvenescimento da infraestrutura do país, principalmente nas áreas de ferrovia, portos e transporte urbano.
Essa percepção é, por incrível que pareça, compartilhada por expressivo segmento de empresários bilionários, entre os quais se destacam Warrem Buffett, George Soros e Michael Bloomberg. Esses empresários compreendem que nada melhor para o capitalismo do que o impulso à demanda por bens e serviços proveniente das classes média e menos privilegiadas. Evidentemente, sob a condição de que esse impulso seja lastreado pelo incremento em suas rendas e não agrida sua capacidade de endividamento.
Abordado no ambiente acadêmico, mas omitido pelas lideranças políticas, o vínculo entre desigualdade e recessão ainda não conquistou o merecido status de alvo crucial de mobilização da sociedade americana. Na presente campanha eleitoral para a presidência do país o tema vem sendo mencionado de maneira inadequada. Até mesmo os candidatos mais à esquerda se referem ao combate à inequidade como uma questão somente de justiça social e não de dinamismo do conjunto da economia.
Fonte: Revista “Conjuntura Econômica”, março de 2016.
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