Na semana passada comemoramos o Dia das Mães e os 130 anos do fim da escravidão. A pauta da crônica estaria feita, não fosse o desafio de tudo alinhavar com a perturbadora notícia da morte assistida e programada (esse eufemismo para o suicídio) de David Goodall, um professor britânico de 104 anos.
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A figura materna — aquela mulher que nos construiu e abrigou no seu corpo — é um emblema da vida. Ela fala da Virgem Maria, Mãe de Deus, da padroeira do Brasil e da maternidade como a mediadora entre a vida e o nada.
Na minha vida, mamãe foi libertadora com o seu piano tocado com virtuosidade e amor. Era ela quem, ao entardecer, harmonizava nossa casa.
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Entre essa mãe branca e livre e as mães escravas cujos filhos nasciam na iniquidade, há o fosso de uma desumana desigualdade até hoje predominante no Brasil. Muitos de nós conhecemos a ternura dessas mulheres na forma de amas de leite e empregadas. Trabalhadores pouco alcançados pelos ressentimentos de classe que tanto têm marcado este país de privilégios e de privilegiados mais conscientes dos seus direitos do que dos seus deveres.
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Escravidão é, como disse o sociólogo de Harvard Orlando Patterson, morte social. Morte não escolhida e, obviamente, evitada como provam as fugas e revoltas de escravos em toda a parte.
Aos 104 anos de uma vida aparentemente bem-sucedida, o velho David Goodall afirma: “Eu não desejo mais continuar a vida” e — eis o que me mobilizou — “estou muito feliz de ter a oportunidade de terminá-la.”
Como compreender essa busca da morte?
Como situar tal serenidade num mundo cuja cosmologia afirma a imortalidade como prêmio e o cerne da salvação? Num outro mundo, é claro. Num mundo onde não há escravidão nem maternidades a serem comemoradas porque ninguém nasce no “outro mundo” (esse universo das coisas perfeitas e eternas, como disse Platão e repetem os nossos credos).
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Surpreendeu-me a morte assistida de um idoso vivendo um estágio da existência concebido como de reconciliação, no qual a morte física não seria mais tão tenebrosa pois, como o próprio Goodall remarcou, a velhice (e disso eu entendo!) nos leva para fora da vida.
O que é extraordinário no caso é o escolher quando (e como) morrer — esse apanágio dos suicidas que, por mil motivos, exerceram o absurdo de sua liberdade; ou, para ficar mais próximo de Albert Camus, a liberdade como um absurdo — como um paradoxo filosófico do tamanho de um bonde.
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Émile Durkheim distinguiu dois tipos de suicídio. O mais conhecido seria o resultado de uma brutal ausência de solidariedade. O menos falado e o mais intrigante seria o suicídio altruísta ou de honra, feito para reparar a própria dignidade; ou a honra do grupo maculada pelo suicida, que oferece a própria vida para reparar o mal que causou. O maior exemplo de altruísmo é o sacrifício de Jesus Cristo pela humanidade; e o de Maria e de todas as mães que sofrem com a morte daqueles que saíram do seu corpo.
Num outro plano, o nascimento na iniquidade da escravidão levou muitos ao suicídio. Ao uso de sua liberdade existencial para a morte como uma saída e uma escolha. Afinal de contas, é melhor morrer do que viver como “coisa” de um senhor.
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A modernidade é feita de infinitos direitos individuais que contestam valores criando, porém, novas obrigações. Direitos se ligam a escolhas. E a deveres. Se podemos escolher gêneros e — nos limites do bem senso e do ridículo — a idade, porque não ter também o direito de morrer?
A decisão de David Goodall assombra, mas o direito de morrer é aceito nos fumantes inveterados, nos que abusam do álcool, nos que comem além da conta e naqueles que são convocados a morrer pela pátria ou por uma causa. A conversão integral a uma causa suprime a liberdade e a responsabilidade. Da perspectiva da “causa”, não matamos seres humanos, mas perigosos subversivos. Quem justifica a exceção é o ideal de pureza ou a libertação dos oprimidos. A surdez ideológica sempre conduz ao que Hannah Arendt chamou de banalidade do mal. Nessas estruturas, o mal torna-se tão plausível quanto uma mala cheia de dinheiro…
Os autocratas sabem tudo — eles dominam os fatos — mas não assinam nada…
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Se não escolhemos a vida, não seria justo poder escolher, como fazem os heróis, os mártires, os ativistas e os sofredores, a morte?
O ato da morte consciente deve ter acompanhado muitos suicidas. E a negação do direito de morrer é mais evidente em sistemas nos quais a vida tem que ser suportada a qualquer preço, sem reclamação e revolta, como o nosso. Algo perfeito num universo escravocrata e paternalista.
O que mais perturba na morte assistida é a afirmação de que tanto morte quanto a vida são imanentes. Vivemos relacionados aos outros Mas quando não se quer mais viver assim não seria legitimo morrer?
Fonte: “O Globo”, 16/05/2018