Trump não tem problemas com regimes autoritários. Ele admira o russo Putin, o turco Erdogan e o saudita Bin Salman. Uma exceção notória é Nicolás Maduro, um personagem que o faz falar sobre direitos humanos. Ninguém, porém, deve se iludir: do ponto de vista do presidente americano, a Venezuela é sobre esferas de influência.
O conceito de esferas de influência aproxima Trump de Putin. O líder russo devota um desprezo absoluto pela noção de soberania popular. Na Ucrânia, quando o povo se levantou contra o regime pró-russo de Viktor Yanukovych, em 2014, o Kremlin interpretou a revolução como ingerência estrangeira num país aliado: uma conspiração ocidental antirrussa. Trump nunca discordou da avaliação, tanto que se recusou a condenar a anexação da Crimeia e a guerra separatista patrocinada por Putin no leste ucraniano.
Sob as lentes de Trump, Maduro deve cair não porque seu regime viole sistematicamente os direitos humanos ou porque tenha conduzido a Venezuela a uma catástrofe humanitária sem precedentes. A substituição do regime, aos olhos da Casa Branca, é um imperativo ditado pela meta de restauração da hegemonia dos EUA na sua esfera tradicional de influência.
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A política externa trumpiana organiza-se ao redor desse conceito antigo, que está sendo reativado por Washington e Moscou. No teatro do Oriente Médio, os EUA traçam uma linha no chão, dividindo áreas de influência com a Rússia. A aliança americana com Israel e a Arábia Saudita destina-se a contrabalançar a aliança russa com o Irã e a Síria. A anunciada retirada das forças americanas da Síria tem a finalidade de concluir a partilha geopolítica, que inclui a aceitação de uma “faixa de segurança” para a Turquia mesmo às custas do abandono dos curdos à sua própria sorte.
A nova/velha lógica geopolítica das grandes potências paira sobre a Ucrânia e a Venezuela. Inicialmente, Putin estabeleceu o objetivo de impedir a estabilização do governo pró-europeu ucraniano, utilizando para isso o instrumento da rebelião separatista no leste do país. Certo de que os EUA de Trump não se engajarão na proteção da Ucrânia, Putin revela-se determinado a dar um passo adiante. Desde o bloqueio dos portos do mar de Azov, em novembro, Moscou parece jogar suas fichas na hipótese do colapso do governo ucraniano.
A crise venezuelana tem potencial para acelerar o projeto de Putin de restauração da influência russa sobre a Ucrânia. Essa é a chave para interpretar os movimentos russos na batalha pela Venezuela.
A Venezuela não é a Síria. O regime de Bashar Assad tinha uma sólida base social, fincada nos alauitas e nos cristãos, que temiam a tomada do poder pelos sunitas. Já Maduro não dispõe da lealdade incondicional de nenhum setor da população. Além disso, Assad contava com a paliçada protetora do Irã, uma potência regional relevante, enquanto o chavismo tardio já não dispõe dos apoios do Brasil e da Argentina. Putin sabe que o regime de Maduro não sobreviverá, mas aposta no prolongamento do impasse, a fim de extrair o máximo possível de concessões dos EUA.
O apoio dos bancos russos a Maduro confere algum fôlego ao regime cercado pelas sanções americanas. O alento diplomático do Kremlin mantém, por enquanto, a fidelidade do alto comando militar venezuelano a um regime em ruínas. Trump comprometeu-se irreversivelmente com a derrubada do regime chavista. Washington já não pode voltar atrás sem se desmoralizar por completo —e, ao mesmo tempo, quer evitar o profundo desgaste de uma intervenção militar. Dessa disjuntiva, emanam as oportunidades de Putin. No limite, a Rússia conseguiria o prêmio máximo: a queda do governo ucraniano, em troca da cabeça de Maduro.
Um intercâmbio desse tipo não faria sentido para Obama, que não se movia no tabuleiro das esferas de influência. Mas ajusta-se à visão de mundo de Trump.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 16/02/2019