Godot?
– Não. Esperando o Brasil.
Tem gente que morreu esperando o Brasil progredir. Eu vivi isso quando aconteceu a bossa nova, houve a inauguração de Brasília, Jorge Amado, Guimarães Rosa estavam presentes e os antropólogos da minha geração iam derrotar os poderosos e salvar os índios e os pobres. Hoje, eu cansei de esperar.
O Brasil cansa, diz um amigo.
Mas esperar é a esperança que não pode morrer.
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Mas como contemplar o “Brasil” como uma coisa se nós somos parte dessa coisa? Se nós contribuímos para o seu arraso ou progresso?
Quando falamos da sociedade, que são organismos vivos em que nascemos e, por suposto, queremos bem como pátria, nós nos dividimos. Um lado nosso fala como se fosse de fora; um outro se angustia e confunde porque faz o Brasil. Como cuspir no prato em que, bem ou mal, se come? Não é fácil discutir uma relação visceral com a terra na qual viemos ao mundo e entramos no palco da vida e, ao mesmo tempo, ficar esperando que uma “casta” fabricada e eleita por nós o “conserte”, remende ou embrulhe?
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Quem é mais velho não esperava testemunhar essa trágica onda de roubalheiras, de descasos, de traições, de mistificações, de irresponsabilidades e, hoje, de primitivismo. Temos uma aguda consciência de que o tempo é curto para ver crescimento, otimismo e vigor. Leio que o ajuste da Previdência levará 12 anos. Será que um cara de 80 vai viver mais 12 anos?
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Discernir o significado de uma espera é importante. Escravos não esperavam, inferiores esperam muito, inimigos são mal (ou jamais) atendidos e os estruturalmente fracos e marginais – os “f…” ou cidadãos em geral – simplesmente não existem. A casta de senhores engravatados, que nos governa com seus impecáveis criados e carruagens pretas, sabe que o povo deve esperar pelas proclamações e leis feitas nos palácios e palanques pelos mandões ou “supremos”. Só faltamos chamar o próprio Deus para decidir questões que o bom senso resolveria com um sentido hábil de tempo – como a questão fiscal e seus dramáticos penduricalhos que podem levar à insolvência do Brasil como nação.
Parentes e amigos são atendidos na hora. Não entram em fila, como Alberto Junqueira e eu estudamos no livro Fila e Democracia (Rocco, 2017). Ali demonstramos que a espera, mesmo temporária, demarca inferioridade sociopolítica. O “esperar sentado” revela a distância entre os segmentos que constituem a alma do Brasil.
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Nos primeiros anos do cristianismo, viveu em Roma Lúcio Aneu Sêneca, filósofo e pensador. Foi tutor e conselheiro de Nero, que depois ordenou, tal como ocorreu com Sócrates, o seu suicídio.
Ocupando muitas posições no topo do sistema político-cultural, tinha plena consciência de que todos somos um indivíduo, mas muitas pessoas. Temos muitas máscaras e ocupamos vários papéis cujas matrizes podem ser contraditórias, pois demandam lealdades diversas e decisões diferenciadas.
Num texto célebre, Sêneca ensina uma lição:
“Duas pessoas, diz ele, se combinam num comandante: uma ele compartilha com todos os outros passageiros, porque também ele é um passageiro; a outra é peculiar a ele porque ele é o piloto. Uma tempestade o atinge como passageiro, mas não o atinge enquanto piloto”.
Entre ser presidente, médico, prefeito, professor, contador, gerente, vendedor, juiz, motorista, militar e pai, onde ficamos quando sabemos que os interesses e os fins desses papéis são, em certas circunstâncias, antagônicos? Se o aluno merece um zero, mas é meu filho, ele deve ganhar um sete? Qual é o papel que deve englobar o conflito potencial de papéis da casa e da rua nos regimes democráticos?
É uma densa ironia eleger um candidato autoproclamado republicano para vê-lo governando aristocraticamente, sendo persistentemente embaraçado por seus príncipes. Tal como os velhos caciques e raposas que ele se comprometeu solenemente a não imitar.
Fonte: “Estadão”, 20/02/2019