Vivemos uma verdadeira obsessão classificatória. A etiqueta que você escolhe para descrever suas posições políticas – esquerda, direita, etc. – é tratada como mais relevante do que suas posições políticas. Posso ter posições muito bem definidas sobre todo e qualquer tema relevante da atualidade – privatizações, reformas econômicas, política externa, educação –, mas se eu não tiver escolhido uma etiqueta para me descrever, serei tido como “em cima do muro”, “isentão”. Alternativamente, a pessoa que afirma orgulhosa um rótulo pode ser confusa e genérica em todas as questões, e mesmo assim todos à sua volta acharão que ela tem opiniões fortes.
Para a maioria das pessoas, palavras não têm significados precisos. Seu objetivo não é descrever a realidade objetiva, mas apenas produzir algumas emoções, diferenciar entre amigos e inimigos. Por isso, grande parte das discussões sobre “esquerda e direita” são, na minha opinião, pura retórica que não leva a nada.
Mas podemos sempre tentar restaurar alguma objetividade no uso das palavras. “Direita” e “esquerda” se tornaram basicamente armas retóricas da guerra política, mas acredito que podem ter alguma validade descritiva.
Nisso, sigo o insight básico de Norberto Bobbio em “Esquerda e Direita”: a esquerda se define pelo desejo de igualdade, seja no âmbito dos direitos políticos e civis, seja na esfera econômica. Quem está lutando por maior igualdade entre os homens é a esquerda dentro de um dado contexto.
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Não vejo a direita, contudo, como apenas uma força de resistência, de justificação das desigualdades. Há dois valores positivos pelos quais a pessoa que se identifica como direita pode estar lutando. Dois valores distintos que podem se opôr à igualdade e entre si.
O primeiro é a liberdade individual, e define a direita liberal. Escolhas pessoais, espaço para crescer e construir a própria trajetória na vida, permitir que cada um viva ao máximo possível segundo seus próprios valores, mesmo que isso implique alguma desigualdade.
O segundo é a ordem, e define a direita conservadora. A sociedade humana, para não desabar no puro caos, precisa de algum tipo de ordenamento e hierarquia. Isso pode vir da religião, da tradição, da moral, da imposição implacável de lei e da ordem.
Em alguma medida, esses valores se opõem. Ao mesmo tempo, eles também se pressupõem. Para que haja liberdades individuais, é necessário algum grau de igualdade (política, por exemplo) e regras vigentes que sejam respeitadas. A extrema desigualdade, a vida excessivamente tolhida por uma autoridade e o desregramento social completo são todos altamente indesejáveis e levam ao fim da sociedade.
Sendo assim, nenhuma dessas vertentes é dona da verdade absoluta sobre a sociedade. Representam valores que podem ser mais ou menos necessários, estar mais ou menos em falta, e representar melhor ou pior os ideais dos diferentes indivíduos.
Talvez, se partirmos dessa percepção, e sabendo distinguir aqueles que de fato defendem algum valor daqueles que querem apenas chegar ao poder, a gente consiga superar um pouco as profundas divisões que arriscam inviabilizar a política democrática em nossos tempos.
Fonte: “Exame”, 09/05/2019