Durante séculos, os bancos foram os principais provedores de crédito. Captavam recursos dos poupadores – pessoas físicas e jurídicas – e os emprestavam a indivíduos e empresas para atividades de consumir, tocar negócios e investir. Realizavam, assim, a intermediação entre poupadores e tomadores de recursos, o que a todos beneficiava.
Essa realidade começou a mudar no século passado e se acelerou depois da II Guerra. Iniciou-se o processo de desintermediação, que atingiu níveis crescentes nos países desenvolvidos, particularmente nos EUA. Os poupadores passaram a emprestar diretamente aos tomadores, adquirindo seus títulos no mercado ou aplicando em fundos de investimento que adquirem esses títulos ou os recebíveis de empresas.
O mercado de capitais assumia, assim, papel crescente no provimento de crédito. Nos anos 1970, o mercado de capitais americano ultrapassou o sistema bancário como fonte de crédito para pessoas físicas e jurídicas. Hoje, calcula-se que mais de 80% da oferta de crédito nos EUA se originam nesse mercado.
Aqui, essa realidade estava distante, seja pelo raquitismo dos mercados de capitais, seja pelo processo inflacionário, que desestimulava a emissão de títulos de crédito pelas empresas. Mesmo depois da vitória contra a inflação elevada e sem controle, mecanismos de indexação continuaram a desafiar o Banco Central, exigindo taxas de juros elevadas para manter a inflação sob controle. Em certos momentos, essas taxas foram o remédio para lidar com crises cambiais e de confiança.
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Havia até mesmo uma confusão conceitual. Ainda hoje se acredita que mercado de capitais tem a ver apenas com a Bolsa de Valores e a compra e venda de ações. A parte relativa ao crédito desse mercado era e ainda é ignorada por muita gente.
Tudo isso está mudando pela conjugação simultânea de três elementos. Primeiro, a expressiva expansão dos investidores institucionais – bancos ou fundos – que administram recursos de poupadores, grandes e pequenos. Eles necessitam de lastro para suas aplicações, isto é, de títulos para aplicar os recursos que administram.
O segundo elemento foi a criação da Taxa de Longo Prazo – TLP, que substituiu a Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP, utilizada nas operações do BNDES. Como a TJLP estava sempre abaixo das taxas de mercado, nenhuma empresa cometia a tolice de procurar crédito para investir que não o oferecido pelo banco oficial.
Agora, a TLP tem por base um título público (NTN) de prazo longo, atrelado ao IPCA. As empresas podem tomar crédito com taxa de juros próximas das pagas pelo Tesouro, como ocorrem nos países desenvolvidos. Para muitas empresas, captar recursos no mercado de capitais é agora mais barato do que via BNDES, sem contar a economia de custos de transação decorrente da burocracia associada a um banco do governo.
O terceiro elemento foi a criação do ambiente macroeconômico que permitiu ao BC fixar sua taxa básica de juros, a Selic, em níveis historicamente baixos. Isso significa que a taxa de juros estrutural da economia também atinge seus níveis mais baixos da história.
Diante de tudo isso, tornou-se atrativo buscar o mercado de capitais para financiar atividades, particularmente investimentos de longo prazo. Neste momento, isso foi acelerado pelos incentivos fiscais na aquisição de debêntures de infraestrutura e pela ampliação da parcela que os fundos de pensão podem aplicar nesses papéis.
Uma demonstração dessa realidade está hoje em matéria do jornal Valor. Lá se vê que a emissão de debêntures de infraestrutura no primeiro semestre atingiu R$ 10,5 bilhões, mais do que em todo o ano de 2017 (R$ 9,083 bilhões).
Esse processo tende a ser ampliado com a crescente participação de fintechs na oferta de crédito. Tudo isso vai ter várias consequências. O BNDES terá que se repensado como provedor de crédito oficial, os bancos terão que se preparar para a nova realidade e a economia brasileira se beneficiará da ampliação da oferta de crédito, em grande parte a custos menos do que os atuais.
Essa revolução ainda está em marcha e pode nos trazer boas notícias nos anos vindouros, a menos que seja eleito um candidato à Presidência sem vontade ou capacidade de liderar as reformas de que o país precisa para evitar cair no precipício fiscal e na volta da inflação alta e sem controle.
Fonte: “Veja”, 04/07/2018