Viciado que sou na leitura de jornais (quatro por dia, só um pouco menos que as xícaras de expresso), não posso dizer que tenha sido surpreendido pela notícia publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo acerca do fato de os magistrados do Rio Grande do Norte terem se concedido licença-prêmio retroativa desde 1996, prebenda que poderia resultar em pagamentos de até R$ 300 mil para os beneficiários da generosidade dos desembargadores para com seus semelhantes, se não tivessem recuado depois da divulgação.
Como aprendi com Pedro Fernando Nery, a tal licença foi criada em 1952 para beneficiar servidores que não faltavam ao trabalho (o que em si já é revelador da mentalidade nacional: premiar um comportamento que deveria ser padrão) com folga de 90 dias a cada cinco anos, ou seu uso em dobro para a contagem de tempo até a aposentadoria.
A lei 9.527/97, porém, acabou com o privilégio, mantendo apenas uma possibilidade: em caso de morte do servidor que não o houvesse usufruído, seus dependentes poderiam receber um complemento na pensão por morte. Independentemente da lei, contudo, órgãos com autonomia financeira continuaram a pagar para quem se aposentasse sem usar a licença-prêmio.
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A Procuradoria-Geral da República, contudo, decidiu que nem sequer seria necessário esperar a aposentadoria, interpretação que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte tentou emplacar.
Obviamente não falta quem defenda a legalidade do pagamento, que, diga-se, por ser considerado indenização, não entra na base de cálculo do Imposto de Renda, ou contribuição previdenciária, nem para fins de determinação do teto de vencimentos.
Nem esse evento, nem o pedido da ex-ministra Luislinda Valois para somar a seu salário também o valor que recebia como aposentada (superando em muito o teto constitucional), nem várias outras instâncias de órgãos da administração pública acumulando vantagens são casos isolados. Ao contrário, revelam que há muito o setor público foi capturado por interesses privados, tema que explorei em coluna publicada no fim do ano passado.
De acordo com estimativas do Tesouro Nacional, os três níveis de governo do Brasil desembolsaram em 2015 R$ 2,5 trilhões (37,5% do PIB) referentes às suas despesas primárias. Naquele ano, pouco mais de metade delas (R$ 1,3 trilhão, ou 19% do PIB) foi destinada à remuneração de empregados e ao pagamento de pensões e aposentadorias do setor público, segmento que insere, com sobra, na parcela mais rica da população.
Não temos ainda os dados detalhados no que se refere às pensões e às aposentadorias para 2017, mas noto que no ano passado a parcela referente à remuneração do funcionalismo aumentou, sugerindo situação ainda mais grave nos dois últimos anos.
Na verdade, para o período para o qual dispomos de dados, o que se observa é um aumento persistente dessas despesas relativamente ao produto, enquanto o investimento governamental perde fôlego, assim como os gastos associados mais diretamente à prestação de serviços públicos.
O Estado brasileiro se tornou um espelho obscuro da sociedade, instrumento para grupos privilegiados se apropriarem de parcelas crescentes da renda. Apesar disso, ou cegos, ou anestesiados, nada fazemos para alterar o processo que, a se manter o status quo, em poucos anos se tornará insustentável.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18/04/2018