“Confie em ninguém” foi o título de minha coluna da semana passada em que esmiucei os dados de recente relatório da OCDE sobre a América Latina e da pesquisa Latinobarômetro sobre o repúdio dos brasileiros ao pagamento de impostos. Só para recapitular, os dados mostram que entre 2003 e 2008 houve impressionante queda da aversão ao pagamento de impostos – em 2003, 77% dos entrevistados diziam que não havia motivo justificável para financiar o governo, enquanto em 2008 apenas 33% afirmavam o mesmo. Tal aversão subiu para cerca de 50% em 2017. Curiosa sobre as razões que poderiam ter influenciado o contribuinte brasileiro a mudar de opinião tão dramaticamente entre 2003 e 2008, resolvi investigar em maior detalhe os dados qualitativos da pesquisa Latinobarômetro. Minha tese? Os cinco anos decorridos entre 2003 e as vésperas da crise financeira internacional foi período em que o sentimento da população em relação à sua qualidade de vida mudou de forma extraordinária: pôde-se comprar mais, ter melhores empregos, ganhar salários que chegavam até o fim do mês, acreditar em um País mais justo.
Ainda que parte disso possa ter sido apenas ilusão, como argumentam artigos acadêmicos mais recentes, é difícil desbancar por completo a tese de que a formalização do mercado de trabalho e alguns ganhos sociais não foram completamente apagados pelos anos de desvarios pós-Lula. Mais difícil ainda é desbancar o sentimento do eleitor, os mesmos que definirão os rumos do Brasil nas próximas eleições. Se há algo de revelador nos dados qualitativos das séries temporais do Latinobarômetro, esse algo é que o sentimento do eleitor brasileiro mudou muito. E isso deveria ser suficiente para tornar o debate público um pouco mais próximo da realidade das pessoas. Mas, antes de chegar a isso, tratemos de 2003-2008.
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Durante esse período, o eleitor mudou de opinião sobre o problema mais importante do País. De 1997 até 2005, os problemas mais importantes apontados pelos entrevistados eram o desemprego e as perspectivas de conseguir um trabalho que garantisse a qualidade de vida. A partir de 2006, o desemprego foi substituído pela preocupação com a saúde, ainda em alta em 2013. De 2014 em diante, o principal problema na cabeça dos eleitores passou a ser a corrupção, que atingiu o ápice da aflição popular em 2017. Ao mesmo tempo, enquanto 60% dos entrevistados afirmavam não ter salários suficientes para pagar as contas em 2003, cerca de 41% diziam o mesmo em 2008, proporção que caiu para 35% em 2010, ano da eleição de Dilma Rousseff. De lá para cá, metade dos entrevistados voltou a dizer que seus salários não cobrem as despesas mensais.
Resumindo as informações anteriores, entre 2003 e 2008 a população brasileira representada pela amostra do Latinobarômetro deixou de se preocupar tanto com a ameaça do desemprego e passou a sentir-se mais segura em relação à sua renda mensal. Ainda que maioria esmagadora acreditasse que a distribuição de renda no País sempre fora ruim ou péssima – na média, cerca de 85% das pessoas pensavam assim entre 1995 e 2016, com muito pouca oscilação nos números anuais – o quinquênio que marcou os melhores anos do governo Lula trouxe inequívoco sentimento de melhora e alívio para os eleitores. Isso não é uma defesa de Lula ou de seus atos desde então, mas tão somente a constatação de que o legado por ele deixado na percepção das pessoas foi real a despeito de tudo o que ocorreu posteriormente. Pouco espanta que continue liderando pesquisas ainda que suas chances de estar nas cédulas sejam ínfimas. O fato inconveniente é que embalado por sensação positiva em relação à economia, o eleitor brasileiro passou a acreditar mais no Estado durante esse período, inclusive a ponto de tornar-se mais disposto a financiá-lo.
A realidade foi cruel para as esperanças da população brasileira. Hoje, 92% dos entrevistados acham extremamente injusta a distribuição de renda no Brasil, a corrupção está na frente do desemprego e da saúde como o problema mais importante a enfrentar, os salários são insuficientes para a metade da população. E os candidatos? Os candidatos tentam emplacar campanhas sem qualquer substância sobre os rumos das políticas públicas, alguns tentam ganhar votos e simpatia atiçando o tribalismo e a raiva das redes sociais. Enquanto isso, a recuperação econômica resfolega e as contas públicas continuam a se deteriorar. Os eleitores não estão perdidos. Perdidos estão todos os pretendentes ao cargo máximo da República.
Fonte: “Estadão”, 25/04/2018