A Argentina vive uma de suas piores crises. A guerra comercial entre Estados Unidos e China gerou volatilidade nos mercados financeiros, desaceleração das economias da China, da União Europeia e dos Estados Unidos e colocou o mundo à beira de uma recessão. O efeito sobre a economia argentina foi devastador. Aumento do prêmio de risco, desvalorização do peso, forte aceleração da taxa de inflação, aumento da taxa de juros, recessão e desemprego. A combinação de aceleração inflacionária, recessão e desemprego levou à vitória nas eleições primárias da chapa composta por Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Mais desvalorização, inflação, juros e, finalmente, reestruturação da dívida.
Ao contrário do que acontecia no passado recente, o comportamento da economia brasileira seguiu uma trajetória diferente. Em lugar do famoso “eu sou você manhã”, apesar da volatilidade e da desvalorização cambial, a taxa de inflação continuou em queda ao longo de 2018 e 2019 e o prêmio de risco permaneceu dentro de limites aceitáveis (entre 130 e 140 pontos), permitindo ao Banco Central (BC) reduzir a taxa de juros em meio à turbulência. A economia desacelerou, mas continuou crescendo a taxas positivas. Por que a diferença?
Ao assumir o governo, o presidente Mauricio Macri optou por uma estratégia gradualista de combate à inflação e ao déficit fiscal. A ideia era que, em razão do enorme desequilíbrio fiscal e do descontrole inflacionário, uma estratégia gradualista exigiria menos sacrifícios da população em termos de recessão e desemprego. A taxa de inflação entrou em lenta trajetória de queda e o déficit público continuou em elevação, financiado por aumento do endividamento.
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A estratégia de política econômica adotada pelo presidente Temer ao assumir, em maio de 2016, foi oposta à descrita acima, com ataque frontal à inflação e ao desequilíbrio fiscal, além de se aproveitar do fato de que durante o boom de commodities (2004 e 2010) o País acumulou reservas e transformou uma dívida que era denominada em dólares numa dívida denominada em reais.
Com uma taxa de inflação de 12% ao ano em 2016, o Banco Central se colocou como objetivo atingir a meta para a inflação em 2017 (4,5%). Apesar das fortes pressões para aumentar a meta e reduzir os juros, o BC manteve a trajetória e só flexibilizou a política monetária quando as expectativas para inflação começaram a convergir para a meta. No final de 2017 a meta tinha sido atingida.
Simultaneamente, o governo enviou ao Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) criando um teto para o crescimento do gasto público. Com sua aprovação, reduziu a incerteza quanto à solvência do País. Ao longo do caminho, o prêmio de risco e as taxas de juros despencaram. Uma vez aprovada a PEC, os passos seguintes foram a mudança da taxa de juros do BNDES (que tinha um comportamento pró-cíclico), a reforma trabalhista e a liberalização da terceirização, possibilitando a criação de diferentes tipos de contratos de trabalho, a desindexação dos salários e a racionalização da produção.
Com este conjunto de reformas, os choques de oferta passaram a ficar restritos a seus efeitos diretos sobre os preços, sem contaminar outros preços na economia, e o BC pôde utilizar a política monetária como instrumento anticíclico pela primeira vez desde a estabilização. Aprovar a Nova Previdência (que torna o teto para o gasto sustentável) é indispensável para consolidar esses ganhos e coroar este esforço.
Estes são os pilares da estabilidade. Fundamental mantê-los, se quisermos evitar que o País volte ao “eu sou você amanhã”. Economias como a brasileira e a argentina, historicamente pouco comprometidas com equilíbrio fiscal e inflação sob controle, não se podem dar ao luxo de ser lenientes. Atacar frontalmente os desequilíbrios e manter a trajetória, mesmo diante de pressões aparentemente insuportáveis, é condição indispensável para chegar à vitória.
Fonte: “Estadão”, 31/08/2019