A capacidade do presidente de controlar politicamente outros poderes e instituições é fonte de instabilidade nas democracias da América Latina? Muitos autores argumentam que a acumulação de grande quantidade de poder nas mãos do presidente, aliada à sua capacidade de influenciar as decisões do Legislativo, seriam ameaças persistentes à estabilidade da democracia, especialmente quando presidencialismo vem acompanhado de multipartidarismo.
Nessas circunstâncias institucionais claramente vantajosas para o presidente, legisladores enfrentariam grandes dificuldades não apenas de legislar, como também de fiscalizar potenciais desvios de conduta do próprio Executivo. Além disso, o presidente teria baixos incentivos de buscar cooperação com o Legislativo, especialmente quando seu partido e/ou coalizão forem minoritários.
Recentemente, temos observado iniciativas de legisladores brasileiros de reivindicar alguns dos poderes delegados para o Executivo na Constituição de 1988. Um bom exemplo é a iniciativa da Câmara dos Deputados que acaba de tornar impositiva a execução das emendas coletivas das bancadas estaduais. Ação semelhante já tinha sido observada em 2013, no governo Dilma Rousseff, quando o Legislativo decidiu tornar obrigatória a execução das emendas individuais.
As emendas são recursos orçamentários destinados por deputados e senadores para a execução de obras e serviços em suas bases eleitorais. Existem evidências robustas na ciência política brasileira de que os parlamentares mais efetivos na execução de suas emendas apresentam maiores chances de reeleição.
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Como a execução das emendas tem sido discricionária do presidente, parlamentares se sentiam inclinados a apoiar a agenda política do Executivo em troca da execução de suas emendas, proporcionando assim condições de governabilidade.
À princípio, essas iniciativas de tornar impositiva a execução das emendas individuais e coletivas poderiam ser interpretadas como um fortalecimento do Legislativo vis-à-vis a ampla dominância política do presidente. Alguns analistas, inclusive, já falam em um novo modelo de corresponsabilidade entre o Executivo e o Legislativo em substituição ao suposto moribundo presidencialismo de coalizão.
É importante lembrar que o sistema político brasileiro, que combina presidencialismo com multipartidarismo, não mudou. Só é possível falar um “novo modelo” diante de alterações substanciais das instituições. Presidentes brasileiros continuam a ser eleitos sem desfrutar de maioria legislativa. Para governar com maioria, é necessário a montagem de coalizões partidárias pós-eleitorais.
Existem duas condições necessárias para que o presidente tenha condições de atrair apoio sustentável: um Executivo politicamente e constitucionalmente poderoso e discricionariedade do presidente na alocação de poder e recursos para parceiros políticos.
O enfraquecimento das ferramentas de montagem e sustentação de maiorias legislativas, como as emendas impositivas, só tornará a governabilidade mais cara.
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No momento em que os legisladores internalizarem que não mais necessitam votar favoravelmente ao presidente para ter acesso a recursos orçamentários das suas emendas, vai obrigar o presidente a encontrar outras moedas-de-troca (talvez não republicanas) para que maiorias sejam forjadas.
A estabilidade democrática alcançada no presidencialismo multipartidário brasileiro após a redemocratização é, portanto, resultado direto dos poderes constitucionais e orçamentários do chefe do Executivo, que se transformou no coordenador do jogo político. A perda da dominância política do presidente em relação ao Legislativo é o que pode vir a fragilizar a democracia brasileira.
Fonte: “Estadão”, 17/06/2019