O Ministério Público da União (MPU) tem por chefe o procurador-geral da República, nomeado pelo presidente da República dentre integrantes da carreira maiores de 35 anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado, para mandato de dois anos, permitida a recondução. O MPU compreende o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Militar (MPM) e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDF).
O parágrafo acima é quase a transcrição literal da Constituição. Explicita o necessário para concluir que, nos últimos anos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) sofreu graves danos no seu modelo de integridade institucional.
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), entidade privada só dos integrantes do MPF, resolveu fazer lista tríplice para a escolha do chefe do MPU. Excluiu da disputa os integrantes do MPT, do MPM e do MPDF. A ANPR deixou claro que a lista tríplice seria não apenas censitária – dos seus e para os seus –, mas artificial: lista tríplice de um. A Presidência da República e o Senado, como representantes do povo, apenas poderiam “escolher”, para a PGR, o mais votado na eleição privatizada.
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Atualizou-se a República Velha. No tempo do voto de cabresto dizia-se que o eleitor podia votar, mas não podia escolher. Para a ANPR, os representantes do povo na Presidência da República e no Senado não podem votar nem podem escolher: o procurador-geral era quem eles indicassem.
Na organização da carreira do MPU, admitidas iniciativas para além da liturgia cerrada da Constituição federal, nada impediria a Presidência da República de sujeitar o postulante à PGR à futilidade de um torneio qualquer, por simples portaria afixada no quadro de avisos do Palácio do Planalto. A escolha de critérios de investidura, por iniciativas extravagantes, poderia atingir os magistrados em geral, até os do Supremo Tribunal Federal (STF). Presidente e diretores do Banco Central, oficiais-generais e todos os membros da alta burocracia dirigente da Nação poderiam ser submetidos a todo tipo de recrutamento heterodoxo.
Não obstante, ao longo dos anos, a Presidência e o Senado submeteram-se ao expediente inconstitucional. Até que o presidente Michel Temer esclareceu que também aceitaria o assembleísmo corporativo, mas manteria, ao menos, a prerrogativa da escolha de qualquer um entre os três mais votados. Isso foi o suficiente para que o sindicalismo de beca declarasse à imprensa que se o presidente da República e o Senado não se subjugassem, por inteiro e incondicionalmente, à lista tríplice censitária e artificial, o MPF ficaria ingovernável, com clara ameaça de motim.
O episódio fez lembrar a Revolta dos Sargentos, em 1963, quando graduados desses postos na Aeronáutica e na Marinha, insatisfeitos com julgamento realizado no STF – que lhes recusara a possibilidade de disputar eleições –, invadiram Brasília, o Congresso Nacional e o próprio Supremo Tribunal e mantiveram preso por horas o presidente da mais alta Corte do País.
Nas democracias contemporâneas, não há democracia interna nos tribunais e nos quartéis. O Poder Judiciário e as Forças Armadas são os chamados garantidores de última instância da própria democracia. Se juízes e militares manipulam suas prerrogativas especiais, previstas para proteger a democracia, não há caminho mais curto para a tirania das facções. No Brasil, o Ministério Público é a magistratura de acusação. Seus integrantes gozam as mesmas prerrogativas dos juízes. Por isso não há, nem deve haver, democracia interna na instituição.
Não era o que pensava o ilegal sindicalismo de farda. Nem o que sustenta o atual sindicalismo de beca. Mas para “eleger” o chefe da PGR, na lógica da ANPR, era necessário ter a “base”, o eleitor.
O primeiro chefe da PGR nomeado pelo presidente Lula baixou portaria para estabelecer que os cargos estratégicos do MPF nos Estados seriam ocupados por eleição, em sistema de chapas, como nos sindicatos. Trata-se da Portaria PGR 588/2003. São cargos estratégicos do MPF nos Estados a chefia administrativa, a Procuradoria Eleitoral e a Procuradoria dos Direitos do Cidadão. O primeiro por dispor de poder gerencial, os demais pela sujeição processual que podem provocar contra as classes dirigentes, política e empresarial.
A inconstitucionalidade dessa eleição extravagante é chapada. Quem o diz é a própria PGR. Quando, no governo de Aécio Neves, se tentou estabelecer rodízio entre os promotores estaduais do Cidadão em Minas Gerais, por lei aprovada na Assembleia Legislativa, a PGR promoveu ação de inconstitucionalidade no STF contra a iniciativa. E a equivocada lei mineira nem chegou à extravagância de dizer que o rodízio de funções seria por escolha corporativa.
Além dessa eleição corporativa nos cargos estratégicos, o MPF foi burocratizado com incontáveis grupos de trabalho, assessorias e toda sorte – ou azar, para o contribuinte – de instâncias permeáveis à organização premial da facção dos eleitores da lista tríplice inconstitucional. Agora, a Presidência da República e o Senado indicam que, qualquer que seja o novo ou nova chefe da PGR, a lista tríplice corporativa não terá influência alguma. Será avanço cívico significativo.
A PGR é instituição da soberania popular. Os representantes eleitos pelo povo, na Presidência e no Senado, não se podem submeter a exigências estranhas à Constituição. A retomada da normalidade constitucional na nomeação do novo chefe da PGR é a oportunidade para os representantes do povo exigirem compromisso do escolhido com a cidadania. Acabar com o corporativismo sindical. Revogar a Portaria PGR 588/2003. Coibir a burocracia – cara – de cooptação. Devolver os procuradores à República.
Fonte: “Estadão”, 21/08/2019