A repercussão do texto sobre o teto de gastos, de que o presente artigo trata, faz lembrar um velho tango, em que uma das estrofes diz: “Y vos interpretás/ las cosas al revés…” (“e você interpreta tudo ao contrário”). Ser criticado pelos amigos e “acolhido” por colegas que sempre me criticaram foi uma experiência curiosa. Vamos ao bom debate!
Se utilizarmos o deflator do PIB, vamos constatar que entre 1991 e 2016 o gasto primário real do governo central, líquido das transferências a Estados e municípios, cresceu 5% ao ano. Entre 2016 e 2019, assumindo para este ano uma despesa de R$ 1,4 trilhão e uma inflação média de 3,5%, o crescimento terá caído para 0,5% ao ano. Não tenho dúvidas de que, quando os historiadores se debruçarem sobre o período recente, 2016 será visto como um divisor de águas, por causa da Emenda Constitucional 95 (EC-95), conhecida como PEC do teto. Essa emenda mudou a perspectiva fiscal do País e permitiu uma série de desdobramentos muito favoráveis, com destaque para a queda do risco País, das taxas de juros e da inflação.
A regra aprovada é que a expansão do gasto entre 2016 e 2026 terá de ser nula. Por uma tecnicalidade que não há espaço aqui para explicar, isso não chega a ser verdade, em função do indexador adotado para 2017, que se revelou, a posteriori, superior à inflação observada naquele ano, o que deslocou o teto para cima. Depois de 2017, porém, ele tem se mantido em termos reais, tirando pequenas diferenças entre o deflator do gasto (o IPCA defasado em seis meses) e o do PIB.
Ao mesmo tempo, depois de 2016 tivemos aumentos reais expressivos da despesa com pessoal e com benefícios previdenciários. No triênio 2017-2019, estima-se que a variação real acumulada atinja 14% no caso da primeira variável e 13% no da segunda. Isso deixou as “outras despesas” como variável de ajuste. Esse agregado é um híbrido composto por todo tipo de rubricas, que inclui despesas obrigatórias como o seguro-desemprego ou as sentenças judiciais; outras que na prática ninguém em sã consciência ousaria cortar, como as associadas ao Bolsa Família, etc. O resultado é que o ajuste acaba incidindo no subitem das chamadas “despesas discricionárias”, que eram de 2,3% do PIB em 2016.
Cabe lembrar também que essa rubrica já sofrera cortes importantes em 2015, na época da gestão do ministro Levy. O resultado é operar com despesas discricionárias – que a preços estimados de 2019 foram de R$ 193 bilhões em 2014 –, que serão da ordem de R$ 90 bilhões a R$ 100 bilhões em 2020. Será impossível manter essa dinâmica até 2026 – limite da vigência do teto aprovado em 2016.
O que fazer, então? Com meu colega Guilherme Tinoco, no Texto para Discussão 144 do BNDES, propomos uma alternativa que nos parece adequada: a troca do duvidoso pelo certo. A regra atual prescreve uma norma constitucional rígida para até 2026, seguida por um ponto de interrogação para 2027-2036, quando a regra poderá ser mudada por lei complementar. Nossa ideia é propor uma pequena alteração para 2023-2026, em troca de já deixar definida a regra para 2027-2036.
Concretamente, sugere-se adotar no futuro uma nova PEC para o teto do gasto, definindo um valor para o teto que seja consistente com sua preservação real até 2022 e estabelecendo para os anos seguintes a seguinte “trilha de expansão”:
• 1% ao ano para o período de 2023 a 2026,
• 1,5% ao ano para o período de 2027 a 2030;
• e 2% ao ano para o período de 2031 a 2036.
Além disso, a proposta define a figura de um “subteto” para os gastos correntes, que seriam inferiores ao teto e cresceriam a uma taxa inferior às citadas. Com isso seria criado um “corredor de investimento” que possibilitaria a ampliação do espaço para o investimento público, porém “por dentro” do teto, sem deixar essa ponta do gasto solta, prejudicando o controle fiscal.
Entendemos que a regra proposta teria uma série de vantagens, quais sejam:
• preservaria o espírito da EC-95;
• seria consistente com uma queda da relação gasto/PIB, assumindo que a economia cresça entre 2% e 3% ao ano até meados da década de 2030;
• permitiria um crescimento modesto das despesas, acomodando a inevitável expansão do gasto previdenciário, que continuará aumentando mesmo com a reforma, porém evitando que isso “esmague” as despesas discricionárias;
• e abriria espaço para ampliação do investimento público, sem ferir o equilíbrio fiscal.
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A pergunta-chave é: em que momento avançar com essa agenda e em que contexto? É essencial que se evite encarar a proposta como uma “licença para gastar mais já”. Para evitar que o capital de credibilidade duramente construído nos últimos anos seja dinamitado, é chave ter uma agenda de redução das despesas obrigatórias. Isso inclui definir a indexação do salário mínimo ao INPC por pelo menos dez anos, aprovar uma regra de ajuste nominal inferior à inflação para o funcionalismo referente a 2021-2023, reduzir o impacto do projeto de revisão da carreira dos militares (que onerará seriamente a despesa de pessoal) e trabalhar na reestruturação dos planos de carreira dos servidores. No artigo, dizemos explicitamente que “o timing de um movimento como o que é aqui sugerido é fundamental”. E é dito com todas as letras que essa mudança das despesas obrigatórias deve ser feita antes de qualquer mudança no teto. Se não for agora, que seja em 2023.
Temos claro que o teto não sobreviverá até 2026. Que fique claro, porém: o que foi proposto no texto é que uma regra para dez anos seja mudada do sétimo ano em diante. Isso é algo muito diferente de furar o teto no terceiro ano de uma regra proposta para durar dez anos. A quem se apressou, no debate político, a usar nosso nome para combater o rigor fiscal que os autores defendem, só nos resta a sugestão de escutar o velho tango argentino.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 2/10/2019