Era uma vez o imperador romano que incendiou a própria cidade, a rainha fútil o suficiente para sugerir dar os brioches do palácio à multidão faminta, o presidente que tentou elevar a jornada de trabalho para 12 horas por dia e o prefeito que espantava mendigos com jatos de água (ou lhes arrancava os cobertores).
A internet deu impulso às “fake news”, mas elas não são novidade. Muito antes dos grupos do WhatsApp, mentiras revoltantes divulgadas em livros, enciclopédias, panfletos e jornais tradicionais mancharam reputações, derrubaram regimes e formaram boa parte do que sabemos sobre a história do mundo.
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A imagem deliciosa de Nero tocando harpa enquanto Roma queima é provavelmente intriga da oposição. Tácito e Suetônio, principais fontes sobre Nero, eram senadores descontentes com o fim da República Romana, por isso não foram generosos com a primeira dinastia de imperadores. Como Tácito contou que Nero culpou os cristãos pelo incêndio da cidade, a Igreja, séculos depois, tampouco deixou barato para o imperador.
Os iluministas levaram um pouco de claridade às crenças medievais? Nem tanto. Também difundiram diversos mitos sobre a Igreja e a Idade Média em vigor ainda hoje. Livros didáticos repetem a história de que noivas camponesas eram obrigadas a passar a primeira noite com o senhor feudal (o “direito de pernada”).
Essa história é tão mentirosa quanto a versão de Voltaire sobre Galileu, que teria sido torturado “nas masmorras da Inquisição”. O astrônomo, na verdade, se hospedou em aposentos oficiais durante seu julgamento e era velho demais para ser torturado. Tinha cientistas e acadêmicos entre seus principais inimigos; bispos entre amigos e apoiadores.
Na Revolução Francesa, boatos foram o fermento do ódio. Naquela época, como hoje, a popularização da comunicação propiciou um banquete de histórias revoltantes. A rainha Maria Antonieta foi o alvo mais comum dessa “literatura da raiva”. Panfletos baratos com tiragens de 20 mil, 30 mil cópias divulgaram a lenda dos brioches e retrataram a rainha como uma mãe negligente, mesquinha, depravada.
Mas tiranos também criam suas mentiras. Fidel Castro, diante da escassez de batatas em Cuba, acusou os Estados Unidos de jogarem larvas de avião para sabotar as plantações. O escritor Fernando Morais incluiu sem constrangimento essa notícia falsa no livro “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”.
Caso em que a ficção inspira a realidade, essa narrativa já tinha sido denunciada décadas antes por George Orwell. Em “A Revolução dos Bichos”, os líderes da fazenda, diante da escassez de alimentos, acusam o porco Bola-de-Neve de jogar sementes de joio entre as de trigo para sabotar a plantação.
O diabo é que as mentiras funcionam. Aguçam nossa tentação inata para a “agressão moralista”, a violência em nome da justiça. Se a história é repugnante e bem construída, convence mais que estatísticas e argumentos. Por isso as “fake news” existem há tanto tempo –e não devem nos abandonar tão cedo.
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