Você lê numa quarta-feira gorda. Daqui a sete dias, você vai viver a quarta-feira magra: a das Cinzas. Cinzas que simbolizam penitência e batente. Um ato raro numa modernidade que matou Deus e tem visto o mundo de fora para dentro. Aqui, instalou-se a sabotagem da espera. Estamos condenados a esperar um “depois” que não chega.
Num sentido preciso, reitero uma advertência implantada na minha cabeça quando o carnaval era uma “festa popular” – um “folguedo”.
Hoje, o carnaval é um espetáculo de massa – um show. Não caberia falar em “estrangeiro” num mundo globalizado e, a tal ponto americanizado, que todos “amam” tudo todo o tempo. Antigamente, a gente gostava. Hoje, há o amor interpretado e usado para tudo. Você ama seu cão tanto quanto o sorvete e o marido…
A festa é obrigatória. Você tinha de produzir, participar (como os aniversários e os funerais), ou fugir. Os mais católicos, num país onde todos eram “católicos” (mas não praticavam!), faziam “retiro espiritual” e, em vez de abandonar o trabalho dando risadas, mascarando-se e pulando, o faziam rezando: recitando fórmulas sagradas de joelhos e mãos postas.
De um lado, existe o poder e a política que nós, latino-americanos, misturamos com o sagrado. Para nós, tudo é político. Todos têm heróis e interesses, logo, todos conspiram. Alguns lutam pelos oprimidos, os poderosos roubam o que é de todos. Mas na festa que legitima o direito ao gozo e ao não trabalho – esse carnaval que muda e permanece o mesmo – há riso e malandragem. Revelei isso faz exatos 40 anos no livro Carnavais, Malandros e Heróis!
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Esperando
Idas e vindas
Aprender com a lama?
No mundo religioso das procissões e manifestações, viramos renunciadores e revolucionários; nos desfiles militares saudamos o Brasil como pátria amada e viramos caxias. E no carnaval, viramos malandros. O riso, inventado pelo Diabo esse coadjuvante essencial, é o melhor meio de opor-se à adversidade da vida e do destino.
O poderoso não espera uma gargalhada. Não há nada pior do que uma risada diante do radical que – com a complacência retardada dos que pensam que sabem tudo sobre o mundo – nos chama de “reacionários” e nos acusa de não gostar de ler os autores do seu catecismo. Somos pagãos e eles os salvadores do Brasil. Convenhamos que a cretinice e a hipocrisia têm limites!
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Na véspera de um carnaval que não é mais obrigatório, qual é o catecismo que você vai ler?
O dos feriados nas praias poluídas do Rio e de Niterói (a cidade que ninguém quer visitar…); ou o das montanhas onde um temporal pode matá-lo numa avalanche de lama?
Você decide enquanto, fantasiado, espera pelo Congresso aprovar o ajuste fiscal e a lei anticrime que são a mesma coisa!
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Na sexta-feira, um obeso Rei Momo governa o Brasil. Riso, fantasia, bloco e máscara. Você terá a possibilidade de trocar de identidade de trabalhador pela fantasia de malandro ou bailarina. O bloco substitui a família. A casa não tem mensagem, o “bloco” se apresenta com um tema, tal como as “escolas de samba”, que ensinam como suportar tudo o que, no Brasil, é enlatado pela “pobreza”.
Citemos Epíteto, um escravo romano:
“Tenho que morrer. Tenho que ser aprisionado. Tenho que sofrer o exílio. Mas terei que morrer gemendo? Terei que morrer chorando? Poderá alguém impedir-me de partir para o exílio com um sorriso nos lábios? Meu senhor ameaça acorrentar-me? Pois que me acorrente a perna sim, mas não minha vontade. Esta, nem Zeus pode dominar”.
Seria isso algo digno do seu carnaval? Ou seria essa lembrança do lado mais realista de um escravo que, como nós brasileiros, entendeu que o bom cabrito não berra?
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O carnaval é, como disse em livros e ensaios, um ritual de inversão. Antes dos controles da Quaresma, há a ingestão alucinatória do “tudo pode”.
Hoje, vivemos num mundo carente de marcadores. Não há mais um “prato de comida”, já que podemos comer quantos sanduíches quisermos. Também podemos ser o que nos der na telha.
Éramos rigorosamente balizados e hoje perdemos (e matamos) o rebanho e a direção. Somos simultaneamente cordeiros e lobos.
Em momentos assim, a transgressão carnavalesca que permitia (e obrigava a) rir dos costumes, perde o sentido. Sem pureza não há perigo; sem culpa não há risco, como diria Mary Douglas. E se tudo é possível, não há mais consciência.
Fonte: “Estadão”, 27/02/2019