Quer dizer que o governo não tinha dinheiro para nada, nem para pagar aposentadorias, e agora tem dinheiro de sobra para socorrer pessoas, empresas, estados e municípios? Onde estava escondido esse dinheiro?
Esse tipo de pergunta corre por aí. Na maior parte das vezes, é uma dúvida sincera. Nem todo mundo é versado em economia, de modo que de fato surpreende a facilidade com que, por exemplo, o ministro Paulo Guedes fala em centenas de bilhões de reais. Pessoas sinceras também se surpreendem quando topam com economistas clássicos, ortodoxos e/ou liberais dizendo que é preciso gastar o que for preciso para combater a pandemia.
Mas há também a pergunta que explicita uma crítica. Esta: os fatos derrubaram a tese do ajuste fiscal; o governo tem dinheiro e deve gastá-lo em tudo. Não é preciso explicitar os autores dessas críticas — é o pessoal que levou à explosão do déficit, da dívida pública e da consequente recessão.
Assim, convém comentar as dúvidas sinceras. Não havia, nem há dinheiro escondido. O governo continua operando com déficit primário — ou seja, a receita não cobre as despesas. Neste momento, em que se aproxima uma recessão, as receitas devem cair, de modo que o déficit aumentaria mesmo sem os gastos extras para combater o coronavírus.
E como, então, o governo vai aumentar o gasto? Do mesmo modo que fazia antes: tomando dinheiro emprestado. E quem empresta para o governo? Todo mundo que compra os títulos do Tesouro, incluindo as pessoas físicas, as empresas, os bancos e investidores estrangeiros. Mas estes são minoria, de modo que são brasileiros os que mais emprestam para o governo brasileiro.
E quem vai pagar essa dívida que o governo está empilhando? Os brasileiros, pagando mais impostos. Em algum momento, depois da crise, o governo terá que voltar ao ajuste fiscal, ou seja, gastar menos do que arrecada. Isso porque a dívida não pode aumentar sem parar. Se fosse assim, os credores desconfiariam que o devedor vai dar o calote e ninguém mais toparia emprestar para o governo. Gastando mais do que arrecada e sem conseguir tomar empréstimos, o governo começa a imprimir dinheiro, a inventar dinheiro, e o resultado é inflação. Já vimos esse filme.
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Duas conclusões importantes. A primeira: para combater a pandemia, o governo tem que gastar porque só ele tem a capacidade de tomar dívida no tamanho necessário. Isso é possível porque há hoje uma tolerância mundial com o gasto público. Todo mundo minimamente sensato sabe que estamos diante de uma catástrofe sem proporções.
A segunda conclusão: o gasto a mais de hoje tem que ser exclusivamente voltado para os programas de combate ao coronavírus e seus efeitos na vida das pessoas e empresas. Deve ser proibido incluir nos pacotes qualquer gasto permanente ou dirigido a setores que não têm nada a ver com a crise.
Nada disso é novidade. O mundo já passou por várias crises em que o aumento do gasto público foi absolutamente necessário. Formava-se consenso em torno disso.
O que faz a diferença? É a saída da crise. No final dela, todos estão endividados. Alguns continuam assim, achando que dinheiro pinta em qualquer lugar, e caminham para outra crise, a econômica, com inflação, primeiro, e recessão depois. Outros países, outras sociedades conseguem voltar a políticas de equilíbrio.
Tudo considerado, não há contradição alguma entre pregar o equilíbrio das contas públicas, em tempos normais, e o aumento de gastos neste momento. E que fique claro: a conta será paga pelos brasileiros. Por isso mesmo, o dinheiro tem que ser destinado aos mais vulneráveis.
E uma terceira conclusão: diante de uma crise dessa proporção, o governo não precisa apenas gastar mais; precisa gastar mais e já. A pandemia não espera a burocracia se ajeitar. As pessoas já estão em dificuldades.
O cardápio de medidas é quase universal: mandar dinheiro para os mais pobres; preservar empregos e salários; garantir auxílio-desemprego; evitar a quebradeira de empresas; manter o equilíbrio do sistema financeiro.
Todos os governos estão programando isso. A diferença está entre os que fazem e os que anunciam.
Fonte: “O Globo”, 2/4/2020