Em 2016, a polarização crescente pariu o Brexit e a vitória de Donald Trump. Em 2019, o nacionalismo deturpado responsável pela composição genética desses dois eventos transformou-se naquilo que estrategistas militares, matemáticos e economistas chamam de guerra de atrito. Dito de modo simples, a guerra de atrito é a tentativa de ganhar uma batalha — seja na esfera política, no âmbito da negociação privada, ou no campo militar — exaurindo o oponente por meio de um período prolongado de perda de recursos. Na esfera política, os recursos perdidos são o capital político e o apoio do eleitorado; nas negociações privadas, os recursos perdidos são geralmente financeiros; no campo militar, os recursos perdidos são armamentos e soldados. Sai “vitorioso” da guerra de atrito o lado que possui mais recursos ou que tem mais capacidade de aguentar as perdas prolongadas, contínuas e exageradas. Não é difícil construir cenários em que o lado “vitorioso” acaba amargando perdas maiores do que os ganhos de ter vencido a guerra.
Para entender o Brexit e a birra de Trump pelo muro que fechou partes do governo americano, é útil formular estrutura simples para reflexão. Em uma barganha privada, onde as partes envolvidas tentam obter concessões umas das outras, impasses são geralmente resolvidos com perdas e ganhos racionalmente distribuídos. Em um embate público — como uma guerra ou uma barganha política —, há sempre uma terceira parte envolvida que influencia o toma lá dá cá indiretamente.
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Esse terceiro participante é a população, ou o eleitorado. Considerando apenas o embate político, quando o eleitorado está mais alinhado ao centro ideológico, a batalha entre extremos acaba envolvendo concessões de ambas as partes, o que quebra eventuais impasses de forma mais rápida. Para os que conhecem a literatura técnica sobre o assunto, esse resultado é uma espécie de corolário do teorema do eleitor mediano — o teorema afirma que, se o eleitor mediano for representativo das posições ideológicas da população, prevalecerão medidas e agendas políticas mais ao centro. O centro é o local que abriga as concessões capazes de quebrar impasses.
Contudo, quando aumenta a polarização do eleitorado, o teorema do eleitor mediano vai para o espaço. Além disso, quando os eleitores e observadores da barganha política estão entrincheirados nos extremos ideológicos, eles tenderão a endurecer as posições daqueles que negociam diretamente, aumentando as chances de uma guerra de atrito. Sob essa espécie de formalização teórica meio simplória, é possível entender tanto as causas do Brexit e do shutdown americano quanto entender por que os impasses dos dois lados do oceano devem não só perdurar, mas acabar gerando perdas muito maiores do que se poderia conceber para todas as partes envolvidas direta e indiretamente. Theresa May perdeu o voto sobre seu plano para o Brexit após dois anos de intensas negociações com os parceiros europeus porque os defensores e opositores da saída do Reino Unido da União Europeia (UE) não querem ceder milímetro para o outro lado. Como o plano de May necessita de inevitáveis concessões, foi veementemente rechaçado pelos engalfinhados na guerra de atrito, o que não isenta a primeira ministra de críticas a sua atuação. No embate entre a UE e a Grã-Bretanha, parece que a ilha tem mais a perder do que o continente, o que aumenta a chance de que em 29 de março, prazo estabelecido para o Brexit, o Reino Unido saia da UE desunido e sem acordo — o pior cenário para todos.
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Algo semelhante ocorre aqui nos EUA. Trump esperneou e disse que sem financiamento para o muro não apoiará qualquer medida legislativa para reabrir o governo. Por outro lado, o Partido Democrata, que hoje lidera a Câmara, afirmou que o muro como medida de segurança para a fronteira não faz sentido e que portanto não dará a Trump nenhum tostão a mais do que já fora oferecido. Fortalecidos pelos eleitores de ambos os lados, estão dadas as condições para a guerra de atrito. Como acaba, ninguém sabe. Não é fácil saber qual o lado mais fraco nessa história. Contudo, é certo que o impasse prolongado seguirá uma espécie de princípio de Hemingway: os custos serão lineares e graduais e, subitamente, exponenciais e abruptos. Não é impensável que a economia americana em final de ciclo de expansão acabe sendo duramente atingida, levando consigo o resto do mundo. Araújos à parte, da última vez que conferi, o Brasil ainda fazia parte do resto do mundo.
Fonte: “Época”, 18/01/2019