História alternativa é um gênero de sucesso na ficção. E se a Alemanha nazista tivesse ganhado a Segunda Guerra? E se Hitler tivesse sobrevivido? E se Roosevelt tivesse perdido a eleição em 1940? E se Al Gore tivesse derrotado George W. Bush em 2000? É enorme a lista de livros ou filmes especulando sobre como seria a realidade se o acaso tivesse feito o mundo girar apenas um pouquinho para o outro lado.
Tem ganhado corpo nos últimos tempos uma formulação brasileira do “e se…?”. E se Dilma Rousseff não tivesse sofrido impeachment? Estaríamos em situação melhor? Os caminhoneiros teriam parado o país? Quanto estaria o dólar? E a incerteza política?
Há uma ilusão de que, se Dilma não tivesse sido derrubada, talvez o Brasil não estivesse diante de um abismo nas próximas eleições. O desconforto com a decisão tomada pelo Congresso dois anos atrás tem surgido mesmo entre aqueles que apoiaram o impeachment.
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“Talvez tivesse sido melhor ela ficar, não está acontecendo nada de diferente em relação a antes”, diz o servidor público Mário Magalhães, de 33 anos, em reportagem publicada pela revista Época sobre os “paneleiros arrependidos”, aqueles que protestaram pela queda de Dilma e hoje acreditam que o impeachment trouxe ainda mais dificuldades.
Pela própria natureza da experiência humana do tempo, é impossível comparar a realidade com uma hipótese. Esta é, por sinal, a falácia costumeira entre aqueles que minimizam os crimes da ditadura militar argumentando que os crimes de um eventual regime comunista teriam sido piores. É um erro óbvio e colossal comparar o que é ou que que foi ao que poderia ter sido.
Quem faz isso busca conforto mental, alívio a dores psíquicas difíceis de aceitar ou suportar. É um sintoma normal entre aqueles contaminados por ideologias. Nada mais natural, portanto, que os petistas ou o campo político que defendia a lambança fiscal de Dilma se apoie na realidade crítica que o Brasil vive hoje para defender sua história alternativa.
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Para eles, o impeachement foi um “golpe parlamentar” ou um “golpe por dentro da Constituição” – seja lá o que isso signifique… –, como escreve o cientista político André Singer em seu último livro (leia mais aqui). Foi o responsável, afirmam, pelo esgarçamento das instituições e conduziu ao impasse político em que os partidos tradicionais se esvaziaram.
Argumentam que houve uma improvável conspiração entre empresários, banqueiros, policiais federais, procuradores, juízes transformados em justiceiros, a onipresente “mídia golpista” e 75% do Congresso Nacional para derrubar Dilma e impedir que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltasse ao poder. Ignoram, tão-somente, os crimes por que ambos foram investigados, denunciados, julgados e condenados (de responsabilidade, no caso da primeira; comum, no do segundo).
O mais importante, contudo, não são os delírios e fabulações da história alternativa construída pelos petistas. Mas a indagação genuína de brasileiros como Magalhães, ao se perguntar se o país não estaria melhor caso Michel Temer não tivesse assumido o poder.
Qualquer resposta será necessariamente especulativa – é por isso mesmo que a história alternativa pertence ao universo da ficção. Mas ensaiá-la pode nos ajudar a entender um pouco melhor nossos dilemas como sociedade e a reação do brasileiro a eles.
No campo econômico, dado o retrospecto, o mais provável era a manutenção do desequilíbrio fiscal. Não teria havido reforma trabalhista nem previdenciária. A gestão populista e criminosa da Petrobras teria prosseguido (basta lembrar que o presidente escolhido por Dilma para saneá-la está na cadeia), para não falar nas outras estatais.
Supondo que o cenário internacional desfavorável fosse idêntico ao atual, não há como imaginar que a situação fosse melhor. É provável, ao contrário, que o dólar tivesse disparado bem antes, que o desemprego não tivesse apresentado o recuo dos últimos tempos e que a inflação tivesse saído do controle, consequência implícita das opções de Dilma.
Os paladinos da história alternativa controem um argumento um pouco melhor no campo político. Dizem que as feridas deixadas pelo impeachment tornaram impossível qualquer tipo de costura programática entre os partidos e abriram espaço ao crescimento de aventureiros oportunistas como Jair Bolsonaro ou Ciro Gomes.
Inegável que a disputa política deixou sequelas entre os aliados tradicionais nas últimas eleições, PSDB e DEM, MDB e PT. Também fez crescer o poder de barganha dos partidos menores e fisiológicos no Congresso. Mas será correto atribuir ao impeachment o desmoronamento da classe política ou as dificuldades para negociar alianças eleitorais viáveis?
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Se há um responsável pela crise de representatividade dos políticos, é o combate à corrupção. Foram as investigações derivadas dos escândalos da Operação Lava Jato que levaram Lula à cadeia, flagraram Temer e Aécio Neves em conversas comprometedoras, tiraram a máscara do PSDB paulista, atingiram os governos de Minas e Rio, os presidentes da Câmara e do Senado, além de uma miríade de ministros, deputados, senadores e políticos de menor expressão.
É plausível que Temer e seus aliados tenham apoiado o impeachment numa tentativa desesperada de salvar a própria pele. Mas, ainda que não tivesse havido o consenso que levou à queda de Dilma (com apoio de três quartos do Parlamento e das maiores manifestações de rua na história do Brasil), os problemas judiciais deles não teriam sumido.
Com ou sem impeachment, a Lava Jato teria continuado a fazer desmoronar o edifício instável da política brasileira, ao expor seus alicerces apodrecidos pela corrupção. Não é preciso recorrer a nenhuma fantasia ou história alternativa para entender que não foi o impeachment que o fez soçobrar. Foi a Lava Jato. E ninguém ergueu nada no lugar.
Fonte: “G1”, 08/06/2018