Não li e não gostei. Mas, em compensação, não tenho coragem de resistir ao pedido de um amigo. Eis a cara e a coroa do paradoxo nacional cujo ideal é controlar a lei e ser querido por todo mundo. Estaria nisso o centro do populismo e da nossa alergia a tomar decisões? Em 1800, a corte portuguesa cozinhou em banho-maria Napoleão e, fugindo para o Brasil, mudou o centro de gravidade do seu vasto império colonial. A matriz virou colônia num processo irônico e carnavalesco de mudança, justamente para evitá-la. Eis, quem sabe, a origem do nosso “mudancismo”: mudar para permanecer congelado.
Impedir, proibir e rejeitar fazem parte da nossa base ideológica tanto quanto o proteger que nega a realidade. Depende do lado em que as pessoas se situam, mas é preciso repetir que o foco no lado direito ou esquerdo esconde as distâncias entre os pés (descalços) e a cabeça (vazia).
O novo agride um sistema de medalhões. Tudo – fascismo, comunismo e, quem sabe, até uma insegura igualdade democrática – é possível desde que os protocolos do “bom-tom” sejam observados. O conservadorismo inconsciente leva ao paroxismo das adversidades da competição eleitoral que atingiu em cheio a vida diária e veio para ficar.
*
Eles se encontram num comício no qual todos queriam mudar o mundo. O orador – Jonas Fortuna – era um filósofo paulista certo de que seu partido tinha a faca capaz de cortar com justiça o reino de Jambom, como dizia um injustiçado Lima Barreto.
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Elena, uma baiana igualmente radical, infiltrada pelo grupo político oposto, ouvia controlando a sensação de transitar entre uma Mata Hari e um Romeu em casa de Capuleto. Sua missão era saber mais sobre as táticas do inimigo. Pensou em fugir, como fazia habitualmente, mas apaixonou-se pelo orador com a mesma intensidade com a qual rejeitava suas ideias.
Não compreendia como o rosto, os gestos e o sotaque paulistano do adversário, até então desumano, enredavam seu coração. Ficou perplexa com a presença avassaladora do amor – para ela um mero ardil burguês – por uma pessoa que mal conhecia e, mais que isso, ideologicamente detestável. Mas o fato concreto foi que, como uma pedra, o amor desabou leve sobre ela.
Rosinha Radical, a amiga que a levou ao encontro, traindo seu radicalismo por amizade, chamou atenção para o absurdo de uma pessoa se apaixonar por um inimigo político.
Mas como em outros casos idênticos, ela ouviu a mesma resposta dos apaixonados: a política e a economia precisam de motivos; mas o amor só precisa dele mesmo. Amor com motivo não é amor, é politicalha ou sacanagem…
– O meu amor por esse canalhinha inimigo – argumentou Elena – acontece justamente pela contrariedade e descontinuidade.
– Acho que você está lendo muito o Lévi-Strauss, falou Rosinha.
– Me apresenta, vai…
Ao terminar o encontro e em meio à gritaria das palavras de ordem, os radicais viram-se frente à frente.
– Muito prazer. Gostou do meu discurso?
– Odiei. Mas amei o seu jeito de falar.
– De que lado você está?
– Do seu lado. Somos iguais. Sou tão radical quanto você.
Ele a olhou nos olhos com a firmeza dos heróis revolucionários e sentiu-se misteriosamente envolvido por seu coração. Por um instante, quis prosseguir, mas desistiu.
– Vamos pra minha casa. Estou tonto.
– Eu também. Há um choque entre minha cabeça e o meu coração.
– Romeu e Julieta no Brasil?
*
Beberam duas garras de cerveja e na vivência descarada da contradição entre o amor e a ideologia, entregaram-se.
– Li que tudo tem o seu contrário. Eu acho isso um barato. Sem contradição não há tesão. Se minha cabeça permitisse, eu votava com vocês.
– Isso é inexplicável, porque eu penso do mesmo modo. Você é a reacionária-revolucionária mais linda que eu vi na vida. Envolva-me, por Deus, no seu conservadorismo.
– Eu também quero ser abraçada pelo seu viés revolucionário mentiroso e detestável!
*
Falavam numa estranha sincronia quando ele beijou a inimiga na boca, devolvendo-lhe com muito amor o amor que recebia; o qual, quanto mais era egoísta e radical, mais induzia prazer aos amantes.
Fonte: “O Globo”, 28/11/2018