Eventos trágicos costumam despertar grande interesse da mídia e revolta na opinião pública. Foi assim com o estouro da represa de Brumadinho, que vitimou centenas de pessoas, além de deixar um rastro de destruição ambiental e, mais recentemente, com o incêndio que tirou a vida, precocemente, de dez meninos da base do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Como de praxe, instalou-se rapidamente um certo clima de caça às bruxas, com pedidos de prisão e outras medidas extremas, antes mesmo do início das investigações para determinação dos eventuais culpados. Não raro também, começaram a pulular, aqui e ali, textos da lavra de marxistas vulgares e políticos oportunistas culpando o capitalismo e a ganância empresarial pelas tragédias. Hoje mesmo, recebi de um amigo um texto que dizia que as crianças no Ninho do Urubu viraram “mercadoria estocada em contêineres para ser vendida, daqui a pouco, a peso de ouro”. Não satisfeito, o valente dizia ainda que o Brasil “voltou a ser um exportador de commodities humanas, cavadas por toda a parte e “peneiradas” por … “empresários” picaretas, à procura do que possa dar lucro, lucro grande, milionário, com meninos que, com sete, oito anos, são privados da infância porque, além de representarem esta possibilidade, representam também a possibilidade, decerto a única, de tirar a família da pobreza. Se são preciosos, não podiam ser empilhados sem zelo. Sem o amor e o cuidado que toda criança merece.”
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É óbvio que não passou pela cabeça de quem escreveu aquilo o fato de aqueles meninos estarem abraçando uma oportunidade única na vida deles, nem tampouco o fato de que as instalações disponibilizadas pelo Flamengo provavelmente oferecessem mais conforto do que a maioria deles tinha em casa. Pelo que deu para ver até agora, aqueles alojamentos, embora não fossem nenhum hotel de luxo, como alguns gostariam, estavam muito longe daquilo que o autor pinta em seu texto. Pelos vídeos disponíveis nas redes sociais, feitos por eles próprios em seus momentos de lazer, não se nota qualquer sinal de descontentamento dos garotos por estarem ali “empilhados como mercadoria em contêineres” – muito pelo contrário. Por favor, não me entendam mal. Não estou defendendo aqui que os eventuais culpados não devam ser punidos, civil e criminalmente, com o máximo rigor, desde que confirmadas suas respectivas responsabilidades. Meu ponto é outro. Acho que estamos diante de um clássico desvio de foco. Eventos como os da Vale e do Flamengo têm natureza culposa, decorrentes de negligência, imprudência ou imperícia. No máximo, estamos diante do que os juristas chamam de dolo eventual – quando se corre o risco de causar o dano. É óbvio que, independentemente de culpa ou dolo, os responsáveis têm obrigação de reparar os danos materiais e morais – na medida do possível, já que a vida humana não tem preço. Mas também parece claro, pelo menos para quem não apresenta uma ânsia desmedida por encontrar bodes expiatórios, que as mortes de Brumadinho e do Rio de Janeiro não foram resultado de ações premeditadas, realizadas com intenção deliberada de matar ou causar dano.
Por outro lado, o país está, há anos, diante de uma enorme catástrofe social, sem que a população demonstre nem 10% da indignação que vimos agora. O Brasil convive com mais de 60 mil homicídios por ano, há muito tempo. Desses homicídios todos, apenas 2% são solucionados e os culpados devidamente punidos. Notem que estamos falando de crimes de natureza dolosa, em que o agente age com motivação e intenção de causar dano ao outro. Entretanto, pouco há por aí manifestações de indignação com esse tipo de situação. Ninguém parece se importar com o fato de que o sistema criminal do Brasil lave as mãos diante da maioria dos crimes graves – ou os penalize com penas muito brandas.
Nesses dias mesmo, a imprensa trouxe a notícia de que o homem acusado de tentar matar a companheira e de decepar as mãos dela durante uma discussão em São Leopoldo, interior do Rio Grande do Sul, teve a pena reduzida pela Justiça gaúcha, em julgamento de apelação no dia 31 de janeiro. Inicialmente, Elton Jones Luz de Freitas chegou a ser condenado a 17 anos e quatro meses de prisão em regime inicial fechado. Com a nova decisão, a pena foi reduzida para 14 anos de reclusão em regime fechado, com expectativa de progressão para o semi-aberto em dois anos. A mulher que ele esfaqueou, no entanto, continuará presa à ajuda e à caridade de terceiros para o resto da vida.
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Embora a condescendência das pessoas com os crimes culposos praticados por gente “graúda” seja quase nenhuma, nota-se uma complacência infinita com alguns crimes de natureza dolosa, principalmente contra a propriedade. “A última moda no ativismo da Justiça criminal é o conceito de “crime de sobrevivência”. A teoria sustenta que os sem-teto, os pobres e os negros cometem crimes contra a propriedade e infrações de baixo nível para assegurar sua sobrevivência básica. Aplicar qualquer punição nesses casos seria, portanto, uma violação aos direitos humanos básicos dessas pessoas.” Certamente, quem defende a impunidade para crimes menores nunca leu nada sobre a lei dos incentivos e jamais admitirá que a complacência com eles levará os criminosos a cometer crimes cada vez mais graves. A moral é produto do hábito, já dizia Aristóteles – para o bem ou para o mal.
Impunidade nunca é bom, acho que isso ninguém discute, mas é preciso ter noção de proporção. Qualquer um de nós está sujeito a cometer erros, seja por negligência, imprudência ou imperícia. Médicos erram, engenheiros erram, empresários erram, motoristas e pilotos erram. E seus erros por vezes ceifam vidas. É algo lamentável, cuja punição e reparação não devem tardar. Mas isso é muito diferente de praticar um crime contra a vida, a propriedade ou o dinheiro público, intencionalmente. Ademais, o que coloca diariamente a nossa segurança individual em grande risco são os crimes dolosos, que têm crescido de forma geométrica, enquanto o aparato policial e judiciário fazem quase nada para evitar – e não as tragédias ocasionais, causadas por negligência empresarial ou profissional, por maiores e dolorosas que sejam.