Um traço dominante da cena atual brasileira é, sem dúvida, a insegurança, que se revela de inúmeras formas, desde o desrespeito à propriedade e aos contratos até a dramática violência urbana, promovida pelo crime organizado e pelas milícias.
Nesse contexto, desponta a insegurança jurídica, com grande potencial para minar os valores básicos que regem a vida em sociedade.
No âmbito tributário, segurança jurídica é fator crucial para os investimentos.
Processos morosos e com elevado grau de imprevisibilidade, conceitos excessivamente indeterminados e interpretações ciclotímicas afugentam investidores e criam um clima hostil aos negócios.
As decisões judiciais sobre a natureza da substituição tributária constituem um bom exemplo de ciclotimia interpretativa.
Utilizada desde os anos 1970, ainda que de início restrita a um pequeno número de produtos e com nítido propósito de combater a evasão fiscal, a substituição tributária foi incluída na Constituição pela Emenda n.º 3, de 1993.
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A inclusão justamente no âmbito das limitações do poder de tributar, tratadas no artigo 150 da Constituição, revela claramente uma pretensão de restringir o uso do instituto. Não foi, entretanto, o que ocorreu.
Logo após a promulgação daquela emenda, houve um aumento exponencial de uso da substituição tributária. Não raro foi utilizada com flagrantes extravagâncias, especialmente no que concerne à fixação das margens de valor agregado e abrangência dos produtos.
Instado a examinar a matéria, o STF adotou, por incrível que pareça, entendimentos completamente antagônicos.
A balbúrdia interpretativa torna, inclusive, duvidosa a jurisprudência prevalecente, que pode, a qualquer tempo, ser revertida, em virtude, por exemplo, de uma nova composição da Corte.
Esse fato, em boa medida, se explica pela descomunal extensão da matéria tributária constitucional, que gera espaço para uma miríade de questionamentos, sobretudo quando se considera a nossa irresistível vocação para litigar, traduzida nos 80 milhões de processos em curso no Judiciário brasileiro.
No caso específico da substituição tributária, mais adequado teria sido discipliná-la no Código Tributário Nacional (CTN).
Vivemos, assim, um paradoxo: excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais.
Em recente colóquio em Lisboa, Humberto Ávila, titular de direito tributário na USP, assinalou sua perplexidade com a crise das regras: “O julgador não gosta da regra? Azar da regra! Sabese lá com que critério. Se não reabilitarmos as regras para limitar a participação do intérprete e para controlar o poder, vamos eliminar o caráter normativo do direito”.
Se a substituição tributária é capaz de produzir tamanho imbróglio, o que não dizer do planejamento tributário, com sua desproporcional capacidade de gerar grandes litígios?
O enfrentamento do planejamento tributário abusivo é tema extremamente relevante para as administrações tributárias de todo o mundo, conquanto encerre muitas controvérsias.
No Brasil, efetivamente somente mereceu atenção após a introdução do parágrafo único do artigo 116 do CTN, por meio da Lei Complementar n.º 104, de 2001. O enunciado da norma esclarecia que ela só lograria eficácia plena com o estabelecimento de procedimentos especiais definidos em lei ordinária.
A Medida Provisória n.º 66, de 2002, nos artigos 13 a 19, preenchia o requisito do CTN: distinguia dissimulação de simulação, definia as hipóteses de aplicabilidade do instituto da desconsideração administrativa (falta de propósito negocial e abuso de forma) e estabelecia os procedimentos especiais aplicáveis à hipótese.
Infelizmente, o Congresso Nacional não converteu em lei aqueles dispositivos.
A mora legislativa de 16 anos não impediu, contudo, o Fisco de proceder a questionáveis e exorbitantes lançamentos, visando a coibir planejamento tributário abusivo. A matéria, algum dia, terá imprevisível desfecho no STF. Por que não estabelecer, logo, a regra demandada pelo CTN, eliminando esse foco de insegurança jurídica?
Temos um excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais.
Fonte: “Estadão”, 03/05/2018