Estudos recentes atualizam evidências a respeito do retorno dos investimentos em Primeira Infância. Recente reportagem do Valor estima que o Brasil levará mais de 25 anos para oferecer creches para 50% das crianças. A presença maciça de um qualificado grupo de lideranças empresariais em evento sobre a Primeira Infância, que contou com a presença de James Heckman, sugere que o tema começa a ressoar. Trata-se, portanto, de um bom momento para esclarecer conceitos e dirimir equívocos. O que importa, no longo prazo, é investir de maneira sábia para promover a formação do capital humano. Creches podem ser parte da solução – ou parte do problema. Para a maioria dos brasileiros, pode ser tarde demais ou irrelevante.
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Comecemos pelas evidências: a loteria do nascimento faz enorme diferença na vida e no desempenho escolar das crianças. Isso porque o que somos e o que viermos a ser são fortemente influenciados pelo ambiente em que somos gerados e vivemos nos primeiros anos de vida. Fatores de proteção promovem o desenvolvimento, enquanto fatores de risco o comprometem.
Esses fatores de proteção estão associados especialmente a condições básicas de saúde, higiene, estabilidade emocional e financeira, nível de educação dos pais e, especialmente, à natureza e à forma de sua interação com os filhos.
Fatores de risco estão associados à fome, insegurança alimentar ou habitacional, insalubridade e falta de saneamento básico, drogas e tóxicos de todo tipo, falta de higiene, saúde e infecções, instabilidade familiar – tudo isso tendo como denominador comum a pobreza. Esses fatores geram estresse, que, em nível elevado, compromete o desenvolvimento normal. Evidências robustas demonstram que o número de fatores de risco a que uma criança está exposta é mais relevante do que o tipo específico de fator: dificilmente uma criança exposta a mais de três desses fatores consegue se desenvolver de maneira adequada.
Continuemos com as evidências: na maioria dos países da OCDE, especialmente os da União Europeia, a participação das crianças de nível socioeconômico mais baixo em programas educacionais antes da pré-escola, por pelo menos dois anos, está associada a um desempenho melhor no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa).
Nesses países, é elevada a participação do setor privado na provisão desses serviços, frequentemente com subsídios do governo. Já nos Estados Unidos as evidências mostram que os ganhos são bem mais modestos e as diferenças de desempenho acadêmico entre as crianças de diferente status socioeconômico têm aumentado, apesar do aumento da frequência a creches. Por outro lado, é cada vez mais forte o impacto da ação dos pais, frutos de programas de conscientização e capacitação em habilidades de interação e leitura para os filhos.
No Brasil, há pelo menos três estudos que mostram impacto nulo ou negativo das creches sobre o desempenho escolar das crianças. Ademais, a proposta de creches existente no país – além de inadequações de toda ordem que não cabe examinar aqui – provou-se economicamente inviável para a maioria dos municípios. Quanto mais os municípios avançarem nesse modelo, maior será o seu estrangulamento financeiro no futuro próximo.
Por outro lado, tanto nos países da OCDE quanto nos Estados Unidos, há evidências de que políticas integradas de atendimento à primeira infância, com foco na provisão de serviços diferenciados de acordo com a necessidade da família, tendem a produzir resultados melhores, mais duradouros e de menor custo.
Se o investimento na primeira infância constitui um excelente negócio, resta entender como tornar esse negócio efetivamente rentável para elevar o valor do capital humano de nosso país. O desafio não é apenas o de aumentar a chance dos mais pobres, mas também de reduzir as desigualdades, para o que é essencial o bom uso dos recursos. O que fazer?
Novamente as evidências. Elas sugerem que as políticas mais eficazes para assegurar a base do desenvolvimento saudável nos primeiros anos de vida se apoiam num tripé: redução dos fatores de risco, aumento do impacto dos pais e desenvolvimento de habilidades básicas.
A redução dos fatores de risco está associada a políticas econômicas vigorosas, capazes de gerar emprego, salários e atrativos para a formação profissional, associadas a uma forte rede de proteção social para os mais vulneráveis, com ênfase em garantia de renda mínima com estratégias de saída. Além disso, pressupõe acesso a serviços de saúde de qualidade do pré ao pós-natal, e o acompanhamento pediátrico regular das crianças até pelo menos os cinco anos de idade.
O impacto dos pais, no longo prazo, está associado ao aumento do nível educacional e à redução da gravidez juvenil. No curto prazo, pode ser suprido por programas eficazes para ajudar os pais a interagir de forma mais adequada com seus filhos. A leitura desde o berço é um desses instrumentos. Existe uma gama de modelos bem conhecidos e avaliados – o Criança Feliz, se bem implementado, pode fazer uma enorme diferença.
O terceiro componente refere-se ao desenvolvimento de habilidades básicas, especialmente de linguagem e controle das funções executivas. Isso pode ser desenvolvido por pais e cuidadores adequadamente preparados ou por creches de excelente qualidade.
Política de creche não é o mesmo que política de primeira infância. Políticas para a primeira infância precisam ser concebidas e discutidas em um marco mais amplo da promoção e desenvolvimento do capital humano, envolvendo novos modelos institucionais e mecanismos mais eficazes de articulação entre o governo, as famílias e o setor privado. Nada que se possa fazer de forma unificada a partir de Brasília. Creches e outras estratégias de atendimento às crianças e às famílias, se concebidas e organizadas dentro de modelos organizacionais menos corporativistas e burocratizados, podem vir a ser parte da solução. No momento, são parte do problema.
Fonte: “Valor Econômico”, 16/11/2017
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