Em premiado livro, “Sem Causar Mal”, o neurocirurgião inglês Henry Marsh relata sua prática profissional e alguns dilemas éticos a ela associados. Muitas das experiências descritas referem-se ao trabalho de introduzir novatos à profissão, que assistem às cirurgias ou assumem, sob supervisão, partes de procedimentos.
Ao ler a obra, chamou-me a atenção a brutal diferença do que Marsh descreve com o que hoje ocorre na formação de professores.
Considero a preparação profissional de futuros mestres tão ou mais importante que a de neurocirurgiões, já que uma prática inepta pode ter consequências por toda a vida. No entanto, relega-se muitas vezes a práxis a um status secundário na formação docente, como se fosse uma exigência burocrática para concluir o curso.
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Mas isso não era assim no passado. No antigo curso normal de nível médio, extinto em muitos estados, a aluna assumia trechos da aula, sob o olhar atento da professora titular, e registros de sua prática incipiente integravam (e em países com bons sistemas educacionais ainda integram, embora isso ocorra na graduação ou no mestrado profissional) um dossiê que poderia habilitá-la como professora.
Por que então este menosprezo pela prática profissional? Evidentemente, é vital ensinar a teoria em qualquer profissão, atualizada com os achados mais recentes da pesquisa científica na área. Mas sem prática laboratorial ou no ambiente de atuação futura, com a possibilidade de discutir com os mestres na universidade as dúvidas e os desafios encontrados na cena de trabalho, pouco se aprende do ofício.
Talvez haja aqui uma certa confusão sobre dois conceitos interligados: o papel do professor e a pesquisa em educação.
O professor de educação básica não é um mero estudioso ou intelectual (não orgânico) da educação. Ele forma novas gerações e a universidade que hoje prepara os novos mestres torna-os também pesquisadores, mas não sobre as teorias gerais de pedagogia, e sim sobre seus alunos e sua prática.
Entender como cada aluno aprende, as características de cada um e as competências que deve desenvolver para prosperar na aprendizagem demanda um trabalho cuidadoso de pesquisa e a seleção de procedimentos apropriados.
Isso se cultiva observando ótimos professores ao longo da formação, num bom uso dos estágios probatórios (que hoje infelizmente são meras exigências não levadas muito a sério) ou no desenvolvimento profissional docente.
O que Marsh faz com seus pupilos deveria certamente ocorrer com cada professor, antes que ele assuma uma turma e, depois que o fizer, para que possa de fato crescer profissionalmente.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 08/06/2018