Seis a dez meses é o tempo necessário para o Irã reunir um estoque de 25 quilos de urânio enriquecido a pelo menos 90% do isótopo 235, quantidade necessária para testar sua primeira bomba atômica, segundo a avaliação do Instituto para Ciência e Segurança Internacional (Isis), com base nos dados divulgados em novembro passado pela Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea).
O anúncio de que o Irã abandonará oficialmente os termos do acordo firmado em 2015 com potências ocidentais, Rússia e China coloca o planeta diante da perspectiva concreta de um teste nuclear iraniano antes das eleições americanas deste ano – e o governo Donald Trump diante de um dilema sem precedente.
Coube, por uma dessas ironias históricas, ao chanceler Javad Zarif fazer o anúncio, principal resposta iraniana ao ataque americano que matou o general Qassem Soleimani e o líder das Forças de Mobilização Popular (FMP) iraquianas Abu Mahdi al-Mohandes em Bagdá na madrugada da última sexta-feira. Zarif foi o artífice das negociações que resultaram no acordo nuclear, desde o início sob a suspeita do aiatolá Ali Khamenei e boicotadas por Soleimani e pela ala linha-dura do governo iraniano.
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Na declaração de que o Irã abandonará todas as “limitações finais do acordo nuclear”, Zarif foi cauteloso o bastante para manter uma brecha aberta para recuo, caso os Estados Unidos decidam suspender as sanções econômicas contra o Irã. É um cenário à primeira vista impensável diante da disposição belicosa de Trump e da comoção provocada entre os iranianos pelo ataque.
Considerado o segundo homem mais poderoso do Irã depois de Khamenei, Soleimani era líder ha mais de 20 anos da Força Quds, principal grupo de elite da Guarda Revolucionária (uma espécie de poder paralelo no Irã), responsável pela estratégia externa e pelas alianças com milícias, grupos paramilitares e terroristas financiados e apoiados pelo regime dos aiatolás.
Trata-se de uma rede heterogênea que mantém diferentes graus de subordinação e dependência ao Irã. Vai do Hizbollah libanês aos Houthis iemenitas, passando pelas FMP no Iraque. Sua atuação é autônoma o suficiente para que os iranianos possam se distanciar das ações oficialmente quando conveniente.
Foi o aconteceu com o ataque que destruiu mais da metade da capacidade de produção das instalações petrolíferas de Abqaiq, na Arábia Saudita, em setembro passado, assumido pelos Houthis, mas atribuído ao Irã. É o que volta e meia acontece com os ataques a Israel promovidos pelo Hizbollah, o grupo xiita com que Soleimani esteve envolvido desde a fundação nos anos 1980.
Ou com os paramilitares teleguiados por Teerã na Síria e no Iraque. As FMPs, uma coalizão de diversas milícias de origem xiita, foram forjadas sob a iniciativa de Soleimani para combater o Estado Islâmico. Hoje mantêm ação militar e política por quase todo o país e comandam 101 representantes no Parlamento iraquiano (num total de 384).
Como se viu ao longo do fim de semana, é provável que o Iraque se torne o palco do conflito entre Irã e Estados Unidos. Dependendo de como os choques evoluírem, é possível que as rusgas se estendam pela rede de aliados urdida por Soleimani no Oriente Médio. Mas nada disso se compara ao risco nuclear.
O acordo de 2015 deixou várias brechas abertas e dependia essencialmente da boa fé das partes para funcionar. Embora já testasse os limites de várias formas anteriormente, o Irã só passou a violar os termos de forma explícita em maio passado, um ano depois que Trump anunciou a ruptura. Em sua análise, os cientistas do Isis apontam nada menos que 14 violações de diversas naturezas.
Com base nas informações disponíveis, eles desenvolveram um simulador capaz de calcular o tempo necessário para o Irã chegar à bomba. “O período que o Irã precisaria para produzir urânio de qualidade suficiente para uma arma nuclear tem encolhido”, afirmam David Albright e Andrea Stricker, autores do relatório do Isis. “Com base no novo modelo do instituto e no estoque de 550 kg de urânio já enriquecido, caiu de entre oito a doze meses para de seis a dez.”
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Os cientistas alertam que esse período pode ser ainda mais curto, dependendo da quantidade de urânio enriquecido não declarado, possivelmente armazenado em instalações militares, de acesso vetado aos inspetores da Aiea. Até a retomada das negociações em 2013, era conhecida a propensão dos iranianos em mentir sobre o assunto. Só muito depois de fechado o acordo, houve o reconhecimento tácito de que eles haviam mantido um programa nuclear com fins militares.
A retomada provável desse programa deixa o governo Trump diante de um dilema insolúvel. Ele assumiu o poder prometendo tirar os Estados Unidos das “guerras desnecessárias” no Oriente Médio. O ataque que matou Soleimani revela, contudo, instintos contraditórios.
Há uma tensão latente entre o isolacionismo que quer evitar o envio de soldados (“botas no chão”) e a audácia de quem quer “bombardear a m…” dos terroristas. A depender de como evoluir o conflito – Zarif ainda deixou a porta entreaberta a conversas –, Trump poderá se ver diante de duas opções: ou o Irã terá a bomba atômica, ou então haverá uma nova guerra (com envio de tropas) para destruir as instalações nucleares. Terá de tomar sua decisão antes de os americanos irem às urnas. Dada sua personalidade, é imprevisível o que fará.
Fonte: “G1”, 06/01/2020