Sempre que uma expressão em inglês para a qual temos um equivalente perfeito em português se torna popular, eu supeito que haja alguma mistificação em jogo. Algo que é simples ou comum recebe uma aura de complexo, misterioso ou novo. É o caso de “fake news”.
Notícia falsa sempre existiu. E, mais do que falsa, mentirosa. Notícias escritas para enganar, seja com mentiras, distorções, manchetes enganadoras. A concentração da mídia nas mãos de grandes grupos foi capaz de, por algumas décadas, impor padrões mínimos de qualidade e apuro jornalístico à informação veiculada às massas, mas o fenômeno da informação falsa ou enganosa veiculada apenas para movimentar a opinião pública numa certa direção nunca deixou de existir por completo.
Hoje, com a internet – e, especialmente, com as redes sociais – a difusão da informação se descentralizou mais uma vez. Isso nos dá acesso a mais pontos de vista e mais fontes de informação: as pessoas que estão ali junto do fato, mesmo antes do jornalista chegar. Por outro lado, o controle de qualidade anterior à publicação é inexistente. Cabe aos leitores filtrar o bom e o ruim.
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O indivíduo tem mais responsabilidade sobre sua própria obtenção de conhecimento. Ao mesmo tempo, o meio da rede social nos estimula a buscar fama e o status dentro do próprio grupo ideológico, levando muitos a compartilhar e comentar justamente conteúdo mais sensacionalista e mais radical, que atrai mais a atenção do que notícias neutras e comentários equilibrados. Os criadores e difusores de conteúdo falso contam agora com essa ajuda da natureza humana para ajudar no trabalho deles.
Na repercussão da morte de Marielle, vimos esse processo em tempo real. As mentiras (que ela teria sido casada com um chefe do tráfico de drogas, que fora eleita pelo CV, que era usuária de drogas), as informações enganosas (como um post que reclamava da morte de uma médica não ter a mesma cobertura midiática; só que a médica morrera anos antes, e seu caso recebeu sim ampla cobertura da mídia) – uma verdadeira inundação de mentiras e distorções para enlamear sua reputação e negar um momento de solidariedade pública ao lado contrário do espectro ideológico.
A situação em que vivemos me preocupa, mas uma pesquisa recente permite algum otimismo moderado. Uma pesquisa recente do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), da Universidade de São Paulo, revelou um resultado curioso: as páginas de notícia mais engajadas – que são também as mais ativas na hora de divulgar conteúdo tendencioso ou mesmo falso – atraem principalmente leitores mais velhos. Os mais jovens gravitam mais para páginas da mídia tradicional.
Isso corresponde a algumas percepções partilhadas das redes. Por exemplo, a de que o conteúdo mais ideológico e as farsas virais vem de “tiozões” revoltados em grupos de Whatsapp. Sendo verdade, abre uma possibilidade interessante: de que as vítimas mais suscetíveis à informação falsa são aquelas menos afeitas ao meio online e às redes sociais: aqueles que cresceram e se formaram antes da internet e que nunca desenvolveram o senso crítico que as redes pedem. Entre os mais jovens, esse senso crítico é mais comum, de modo que a situação preocupante em que vivemos seja talvez só a transição para um novo status quo no qual a qualidade da informação voltará a ser levada em conta pelos leitores.
Essa é a interpretação benigna, otimista. A pessimista é imaginar que, conforme a pessoa envelhece, ela se endurece em suas posições e passa a buscar mais do mesmo, radicalizando-se. Os jovens abertos de hoje serão os tiozões reaças (ou comunas) de amanhã.
Seja como for, a responsabilidade individual sobre a própria formação continuará a aumentar. Sejamos jovens ou velhos, cabe a cada um desenvolver o próprio senso crítico, pois não há mais instituições externas a nós para fazer esse trabalho. O bom e o ruim competem por nossa atenção; se nos esquivarmos dessa responsabilidade, quem perde é o mundo.
Link para a pesquisa do Gpopai aqui.
Fonte: “Exame”, 22/03/2018