A recepção das eleições britânicas tem sido marcada por alguns equívocos: não se trata de ascensão de um populista iliberal, mas de um bufão. Há menos ruptura e descontinuidade do que se afirma. É certo, contudo, que o futuro do Reino Unido está em jogo, e não podemos trivializar fato dessa envergadura.
A teatralidade de Johnson não faz o populista: é consistente com certa tradição de excentricidade da elite política britânica. Seu discurso é distinto daquele de Trump ou Farage. Por sua vez, a radicalidade de seu rival, Jeremy Corbyn, não destoa da de outros líderes trabalhistas das décadas de 80 e 90, como Tony Benn ou Michael Foot (cuja cabeleira era ainda mais exótica do que a do líder conservador), que sofreram derrotas acachapantes para Thatcher.
A eleição reafirmou o bipartidarismo –e o fim da era dos governos de coalizão–, levando o país de volta ao padrão iniciado em 1922, quando os trabalhistas substituem os liberais como segunda maior força política. Em 1997 e 2001, os conservadores foram massacrados por Blair (165 cadeiras ante 418 e 412 dos trabalhistas), o que levou a previsão de que nunca se recuperariam. Vitórias esmagadoras de ambos os lados são a regra mais que a exceção. O que é novo é que o eixo da disputa mudou e produziu realinhamento territorial do voto. Resta saber se de forma temporária ou definitiva.
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O que explica a derrota dos trabalhistas foi a introdução de uma nova dimensão na disputa política –o brexit– que é ortogonal à dimensão redistributiva que vertebrou historicamente a política no país e que opõe trabalhadores e classes médias. Seu impacto na Escócia foi crucial: lá, o regionalismo substituiu o trabalhismo arraigado. E a essa dimensão acoplou-se uma guerra cultural, entre valores tradicionais e cosmopolitas.
Outro elemento de continuidade —teve início com Thatcher e Blair— refere-se ao que Paul Webb examina em “The presidentialization of politics” (A presidencialização da política, Oxford University Press, 2015): a vitória foi mais de Johnson do que de seu partido; importou mais sua liderança do que o programa partidário. A derrota do seu rival foi igualmente pessoal, e foi magnificada por sua ambiguidade em relação ao novo eixo vertebrador da disputa.
Aqui há semelhanças com o populismo atual –o que explica algumas confusões conceituais: o parlamentarismo presidencializado tem poucas mediações partidárias; o líder se comunica diretamente com o eleitor. O primeiro-ministro deixa de ser primus inter pares –invertendo o padrão de responsabilidade coletiva característico do parlamentarismo. As eleições gerais tornam-se plebiscitos em torno de lideranças.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 16/12/2019