Aplicar a lei é uma atividade difícil e custosa, especialmente quando as sentenças desagradam a opinião pública ou os interesses de pessoas e grupos poderosos.
Não foi por outra razão que, desde o início da modernidade, muitos soberanos, originalmente responsáveis por fazer justiça entre seus súditos, foram paulatinamente transferindo essa espinhosa função para cortes de juristas ou mesmo para grupos de jurados. Dessa forma, o infortúnio dos súditos que se viam em conflito com a lei não poderia mais ser diretamente atribuído ao rei.
Com as revoluções burguesas e as constituições e declarações de direitos que delas decorreram, a soberania foi deslocada para o povo, que deve expressá-la por intermédio de leis gerais, que a todos obrigam. Dessa forma o cidadão se transformou ao mesmo tempo em soberano e súdito de si mesmo, na expressão de Jean-Jacques Rousseau.
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Ao Judiciário foi conferida independência em relação aos poderes políticos, cabendo a ele resolver conflitos e responsabilizar aqueles que violam direitos, levando em consideração única e exclusivamente o determinado pela lei. Esse é o elo essencial da Justiça com a democracia.
Mais do que isso, a imposição de penas ou restrições de direitos só seria válida se levada a cabo em estrito cumprimento ao devido processo legal. Esse conceito, que tem múltiplas dimensões, está essencialmente associado à ideia de que ninguém pode ser juiz de sua própria causa. Logo, que todos temos o direito de sermos julgados de forma imparcial. A imagem da deusa da justiça vendada expressa essa dimensão essencial da função judicial nos regimes constitucionais.
Peço perdão ao leitor por retomar essas premissas fundacionais do Estado democrático de Direito, que todos conhecem. Faço com o único objetivo de buscar contribuir para a discussão sobre qual o tipo de relação deve o Judiciário manter com a opinião pública.
Como lembrou a revista The Economist desta semana, Alexis de Tocqueville previu há muito tempo que “mais cedo ou mais tarde” o sistema de eleição popular de juízes “levará a resultados desastrosos… pois ficará claro que reduz a independência dos magistrados…”
Embora no Brasil não tenhamos, felizmente, adotado o sistema norte-americano de eleição de magistrados, os sucessivos escândalos de corrupção tiveram um impacto devastador sobre a confiança nas instituições políticas, o que projetou os agentes do sistema de Justiça (policiais, procuradores e juízes) para o centro da arena política.
A ambição de atender os anseios da população, embora pareça legítima, nem sempre está em linha com a missão de aplicar a lei imparcialmente.
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Nesse contexto, muitos têm buscado estabelecer uma relação direta com a opinião pública, inclusive como estratégia para a vencer a inércia que sempre assegurou a impunidade dos mais poderosos.
Esse, porém, é um movimento arriscado, pois a autoridade dos magistrados não deriva de sua capacidade de interpretar os anseios da opinião pública —até porque não foram eleitos para isso— , mas está diretamente associada à capacidade de aplicar, de forma imparcial, a lei, deixando isso claro à opinião pública. Goste ela ou não do resultado.
Se, no curto prazo, pode parecer sedutor ao Judiciário ocupar um espaço representativo, no longo prazo, “não apenas ferirá o Poder Judiciário, mas também a própria República democrática”. É o vaticínio de Tocqueville.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 27/04/2019