Os argumentos apresentados pelos dois ministros do Supremo Tribunal Federal que ameaçaram a liberdade de expressão ao mandar retirar do ar reportagens da revista digital Crusoé e do site O Antagonista, sob a justificativa de que não se pode “prejudicar a honra de uma pessoa”, não são muito diferentes dos que foram invocados pela ditadura militar em 1979, quando o então ministro do Exército, general Fernando Bethlem, processou o jornalista Antonio Carlos Fon, da revista Veja.
A alegação então apresentada foi de que ele, ao publicar reportagens sobre crimes e métodos de trabalho dos órgãos de segurança, com os títulos “Descendo aos porões” e “Um poder na sombra”, divulgou “fatos deturpados, conclusões tendenciosas e inverdades, com o único escopo de atirar a opinião pública contra as autoridades constituídas” . Segundo o general, as reportagens continham “referências desabonadoras” e “notícias inflamantes”, que “comprometiam a imagem do Executivo”. Já no caso da censura imposta à Crusoé e Ao Antagonista pelos dois ministros do STF, a decisão foi justificada com base no argumento de que as redes sociais estariam se valendo de fake news para “denegrir a honra de integrantes da corte”, quando na realidade as matérias tiradas do ar continham referências a um documento da Operação Lava Jato no qual um empreiteiro que é réu por crime de corrupção fazia referência a uma suposta ligação de seu pai com um desses ministros.
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A diferença nos dois casos está no fato de que o ministro do Exército apelou para a Lei de Segurança Nacional, enquanto os dois ministros do STF recorreram ao regimento interno da corte e à Constituição. Nos dois casos, o que esteve em jogo foi a reputação das Forças Armadas e do Poder Judiciário como instituições perante a opinião pública, por um lado, e o papel da imprensa, que no âmbito da democracia é fundamental ao processo de conversão do pluralismo ideológico em decisões coletivas legítimas, por outro. Ao tentar restringir a liberdade de informação, o general e os dois magistrados colocaram na ordem do dia tensões crises ocorridas em distintos períodos históricos, um ditatorial e outro democrático, e marcadas pelo choque entre a força a lei, entre o arbítrio e a segurança jurídica, entre a violência estatal e as garantias fundamentais. Eles insistiram em invocar o direito positivo como fundamento de seus argumentos e decisões, é certo. Mas o general relegou para segundo plano o fato de que a Lei de Segurança Nacional carecia de legitimidade, por ter sido imposta pelo que os militares chamavam de poder revolucionário.Trata-se de um conceito inspirado no pensamento de Carl Schmitt, o jurista alemão que forneceu os fundamentos jurídicos do regime nazista, e para quem uma Constituição e as leis nela baseadas valem “devido à vontade política existente daquele (seja um Führer, um grupo militar ou um caudilho) que a institui. Dito de outro modo, a validade da Constituição não reside em si, mas na vontade política que a estabeleceu. Já os dois magistrados, pelo modo no mínimo discutível como interpretaram a Constituição, enquadraram-se como mão e luva na contundente crítica em matéria de hermenêutica feita há mais de quarenta anos por um historiador e jurista francês, Pierre Legendre.
“O direito deve permanecer inacessível enquanto instrumento voltado para a manutenção da ordem, seja lá qual for. Por isso mesmo o direito não mente jamais, pois existe , precisamente, com a finalidade de obscurecer a verdade social, deixando que se jogue a ficção do bom poder. Na realidade, em razão da enorme produção normativa da qual (juristas e magistrados) têm o encargo interpretativo, tudo se passa como se um único texto, invólucro infinitamente inchável, estivesse em expansão contínua”. O jurista ou o magistrado “faz a lei falar. Desta maneira, cerceia-se, em relação aos sujeitos da lei, a possibilidade da palavra plena, pois não há absolutamente um discurso quando a comunidade transita pela ritualização dogmática, a qual existe para levar os sujeitos ao destino de se colocar sob o controle dos juristas (ou magistrados). Entra-se, assim, num universo do silêncio: um universo do texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, que faz as perguntas e dá as respostas”, afirmava Legendre .
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A citação pode ser longa. Mas é clara o suficiente para desmistificar o formalismo legal invocado pelo general e pelos ministros do STF ao tratar da Lei de Segurança Nacional e da Constituição, respectivamente, não escondendo o primeiro a preocupação de usá-lo como escudo protetivo para encobrir um julgamento de valor e, os segundos, como uma cortina de fumaça para mascarar ou embaralhar juízes de constitucionalidade ou interpretações tecnicamente equivocadas. É aqui, justamente, que esses dois textos legais entreabrem a dimensão política do direito, presente quer na sua elaboração quer na sua aplicação. A preocupação em assegurar as consequências desejadas e a ênfase à eficácia do poder, em detrimento das preocupações com as garantias fundamentais e com a legitimidade das obrigações politicas, traduz uma profunda perda de confiança tanto no princípio da autoridade quanto na própria validade das decisões judiciais. Afinal, no caso do jornalista Antonio Carlos Fon, dada a ideologia do poder revolucionário, segundo a qual “a Revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima a si mesmo”, prevaleceu a vontade das Forças Armadas. Há 40 anos, os militares julgavam-se assim legitimados quando sustentados por qualquer legalidade imposta por eles.
No caso dos ministros do Supremo, a argumentação não é menos polêmica. Apesar de terem dito que a Constituição é um dogma, algo que não pode ser discutido, só interpretado, eles partiram da premissa de que “condutas criminosas desvirtuam a liberdade de expressão”, motivo pelo qual ela poderia, em alguns momentos, ser contida ou restringida. Com base nessa premissa, recorrendo a considerações genéricas e à revelia da Procuradoria-Geral da República, determinaram a abertura de inquérito sigiloso -a ser conduzido pela própria corte- para apurar “falsas comunicações de crimes, ameaças de demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atinjam a honorabilidade do STF e de seus membros”. Desse modo, não só tomaram uma iniciativa que colide com as garantias fundamentais constitucionalmente asseguradas, como converteram a mais importante corte do País em árbitro de um litígio do qual ela também é parte. Como se não bastasse, em tempos de transparência privilegiaram a opacidade. Diante da repercussão negativa dessa decisão, um dos ministros voltou atrás e corrigiu o equívoco hermenêutico que cometeu, tentando preservar o que sobrou de sua autoridade. O outro continuou afirmando que agredir o Judiciário “é atacar a própria democracia”. Certamente inspirado nos heróis de histórias em quadrinhos, declarou que, “às vezes, é preciso proteger as instituições delas mesmas”. Contudo, de que adianta essa retórica protecionista e esse ímpeto salvador, uma vez que o inquérito sigiloso aberto pelo Supremo passou por cima das prerrogativas constitucionais do Ministério Público? Como pode a corte exercer, com equilíbrio e rigor técnico, o papel de controladora da constitucionalidade depois dessa fala de um seus membros? Como pode ter a pretensão de legitimidade para tomar decisões que rompem o equilíbrio institucional?
Se do ponto de vista da ação, da estratégia e da argumentação as iniciativas do general e dos dois ministros guardam semelhança, do ponto de vista de suas motivações elas em muito se diferenciam. Quando ameaçou a liberdade de imprensa ao acionar o jornalista Antonio Carlos Fon, o general Bethlem tentou garantir a não avaliação judicial das ações arbitrárias cometidas pela ditadura militar, sob a alegação de que ordens são indiscutíveis pelos subordinados no cumprimento do dever de e de que as práticas “revolucionárias” não eram, pela ordem jurídica então em vigor, passíveis de julgamento pela Justiça. Estava, assim, preservando sua corporação, então saída de um confronto entre o presidente Ernesto Geisel e um ministro do Exército que tentou depô-lo, o general Sílvio Frota. Tinha a consciência da necessidade de coesão e disciplina. Investir contra o jornalista da Veja foi a estratégia que encontrou para garantir unidade dos quartéis.
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No caso dos ministros do STF, eles insistiram na defesa corporativa da magistratura e da respeitabilidade institucional da corte, é verdade. Mas os argumentos não foram de todo convincentes, pois um não conseguiu esconder o temor de que revistas digitais e sites jornalísticos poderiam, mais dia menos dia, divulgar denúncias de corrupção contra ele, advindas de delações premiadas, como foi o caso das matérias da Crusoé e de O Antagonista. Assim, a defesa institucional do Judiciário e a alegação de que a censura aplicada a essa revista e esse site destinava-se apenas “a impedir difusão da falsidade, e não a liberdade de imprensa”, nada mais foram do que um expediente – percebido a tempo e denunciado com firmeza pelo ministro Celso de Mello – para tentar se antecipar à publicação de eventuais de eventuais notícias que maculariam sua imagem e sua autoridade. Por mais paradoxal que possa parecer, o que esse ministro tentou foi constitucionalizar uma questão pessoal de ordem moral que o incomodava, transformando o que seria uma discussão política sobre sua permanência e seu desempenho na corte em questão de direito positivo.
Por fim, entre o caso de 1979 e o caso de 2019, há um último ponto a ser destacado. Trata-se do papel dos jornais, das revistas, das televisões e das mídias digitais na vida política. Jornalismo e política são atividades que se implicam, uma vez que as democracias exigem o concurso da opinião pública, a qual, no espaço da palavra e da ação, julga as razões e os valores em nome dos quais a ação política se fundamenta. Evidentemente, o exercício do jornalismo está sempre sujeito a conflitos de direitos. Contudo, por mais que o direito de liberdade de expressão possa algumas vezes colidir com o direito da honra, cabe ao Judiciário promover uma ponderação entre esses direitos, a fim de que a defesa deste último não sirva de pretexto para comprometer ou esvaziar o alcance e a eficácia do primeiro. A verdade é que, se a imprensa tivesse sido calada tanto no passado quanto agora, sob o argumento de “não difundir falsidades” e “referências desabonadoras”, certamente a transição política dos anos 80 teria demorado muito mais. E democracia não estaria, hoje, conseguindo resistir a quem a afronta, seja por meio de uma sucessão de medidas inconsequentes e irresponsáveis tomadas por quem está à frente de um Poder, seja por decisões judiciais de fundamento jurídico discutível tomadas por quem está à frente de outro poder, nestes medíocres, sombrios e assustadores tempos bolsonarianos.