Apesar de patinar no começo, a simples existência dos Estados Unidos como nação independente foi derrubando pedras no jogo do Caribe – que era também um jogo entre as grandes potências europeias naquele momento. Uma troca importante aconteceu.
A Inglaterra reagiu pesadamente à separação da antiga colônia. Toda sua política comercial estava fundada sobre um único pilar: o Ato de Navegação de 1661. Por ele, todo o comércio exterior de qualquer possessão britânica ficava reservado de maneira monopolista para os navios nos quais tremulava a Union Jack. Era uma das proteções monopolistas mais duras da era mercantilista – mas até Adam Smith aplaudia com entusiasmo (considerava-o “uma das mais sábias leis humanas” quando publicou “A Riqueza das Nações”, justamente em 1776, o ano da independência norte-americana).
Os dirigentes ingleses pensavam assim, de modo que trataram de providenciar um patrulhamento intenso do mar do Caribe por sua marinha. Tiveram sucesso relativo na manutenção do monopólio – mas isso causou certas alterações na estrutura dos mercados.
Nos dois séculos anteriores, a presença de navios mercantes vindos da colônia continental representava um importante fator de eficiência e redução de custos na região. Como havia menos impostos, os produtos de abastecimento para as unidades produtoras de açúcar eram mais baratos. Já os estabelecimentos de outras nações da região dependiam de abastecedores vindos de mais de longe ou do contrabando, de modo que acabavam gerando açúcar com custo maior.
O patrulhamento intensivo transformou os norte-americanos em contrabandistas – e fez aumentar o custo da produção regional britânica como um todo. A situação foi aproveitada pela França para fazer um movimento forte de mudança. Sua principal instalação colonial na região era o Haiti – até então com capacidade de competição relativamente baixa.
Em 1783 a monarquia francesa reconheceu oficialmente a existência dos Estados Unidos. Mais que isso, abriu certas brechas em sua legislação comercial, permitindo que navios do novo país trouxessem pra vender legalmente as mercadorias que até pouco iam para as possessões britânicas. O efeito foi poderoso e imediato.
Em apenas seis anos, até 1789, as exportações saídas do Haiti simplesmente dobraram de valor, chegando a 8 milhões de libras esterlinas (isso num tempo em que as exportações totais dos Estados Unidos e do Brasil – de porte muito semelhante na época) flutuavam em torno de 4 milhões de libras esterlinas anuais. O patinho feio se transformou em cisne: o valor superava em 30% aquele da totalidade das colônias britânicas do Caribe – líderes incontestes até a mudança.
Em menos de uma década havia 800 engenhos de açúcar, 3 mil fazendas de café, outras 3 mil de índigo, mais 800 de algodão. Para levar tudo isso para a Europa não bastavam os mil navios franceses que saíam de lá todos os anos. Norte-americanos, holandeses e até espanhóis ganharam oportunidades de fretes internacionais – muito raras e cobiçadas naquele tempo.
Valia a pena abrir tais brechas naquele momento de explosão, até porque havia cargas para os dois lados. As vendas de produtos metropolitanos franceses para sua colônia importaram em 160 mil toneladas de cargas – enquanto aquelas de Londres para o Caribe inglês empacaram em 148 mil.
A lógica econômica da mudança ficou clara. A rentabilidade média das possessões britânicas caiu para menos de 4% anuais, enquanto no Haiti chegava a 12%. Valia a pena investir – e o principal investimento veio na forma de novos escravos. Como a França não tinha grande tradição no tráfico, negreiros de todo o mundo passaram a dirigir seus negócios para o novo eldorado. As vendas chegaram a 40 mil cativos por ano.
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A rapidez do crescimento econômico abriu oportunidades sociais pouco ortodoxas. Até o início da década de 1780 a produção era controlada por um grupo de proprietários brancos, os seringues – e eles detinham também a exclusividade absoluta no controle da vida política. Formavam uma casta bastante fechada, com 40 mil membros.
As novas oportunidades permitiram que um relevante grupo de mulatos e negros livres ampliassem muito a produção em suas propriedades – comprando escravos. No final da década formavam um respeitável contingente de 28 mil proprietários. Tinham dinheiro, mas nenhum direito de participação na vida política.
Neste cenário aconteceu a Revolução Francesa de 1789. Como nos Estados Unidos treze anos antes, ela foi feita para se instalar um governo capaz de se organizar a partir de princípios universais da razão expressos na forma de lei normativa para a vida social – e direitos igualmente universais para todos os governados.
Na teoria, exatamente o mesmo roteiro seguido por Thomas Jefferson e George Washington – detalhado duas semanas atrás no texto “Da Pena ao Coração”. Na prática, os caminhos seguidos tiveram resultados completamente diferentes. Não houve diferença maior que no caso haitiano.
Na área metropolitana francesa o sentido maior da revolução era derrubar a multimilenar separação dos homens em nobres, clérigos e povo. Para isso, abolir fronteiras era imperioso – daí a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, monumento inaugural de uma organização que se tornaria padrão nos bons países do ocidente.
Acontece que a solução metropolitana teve um efeito inteiramente diverso no Haiti. A primeira mudança aconteceu na esfera da política. Os proprietários negros e mulatos enquadravam-se como portadores dos novos direitos, inclusive o da participação política. A reivindicação sensibilizou a assembleia francesa: em 1791 eles adquiriram as franquias para votar e serem votados.
Esta concessão inicial aconteceu ainda no quadro da completa separação entre o ideal do direito universal (expresso agora legalmente) e a realidade da escravidão. Valia apenas para proprietários livres. Mas tocou na questão da raça – que ali tinha um sentido inteiramente diverso daquele dos Estados Unidos.
O enquadramento da questão racial em categorias de pensamento pelos norte-americanos, como pôde ser visto no texto de “Da pena ao coração”, aconteceu segundo a noção binária ariano/não-ariano. A classificação dicotômica assim obtida separava essencialmente brancos de não-brancos, fossem livres ou escravos. A zona cinzenta no negro livre tendia sempre a ser empurrada para o espaço da escravidão. Caso típico desta atitude foi a legislação feita por Thomas Jefferson para o estado da Virgínia – que seguia o modelo de diversas legislações coloniais.
Já as categorias de enquadramento francesas seguiam uma lógica com 16 divisões conceituais. Brancos eram apenas o topo de uma hierarquia, que incluía mulatos, mestiços de índios, negros livres e escravos – entre outras. Esse modo prévio de entender a questão separava em partes distintas as situações raciais daquelas do cativeiro.
Enquanto os direitos políticos ficaram exclusivamente nas mãos dos seringues, o modelo multicategorial tinha sua funcionalidade: mantinha as distinções de nobreza e permitiam uma fluidez muito grande na organização da produção. Os conflitos diretos eram diluídos, os mestiços tinham um lugar intermediário marcado na vida social. Mais ainda, a possibilidade de enriquecer ficava aberta como caminho de ascensão, de modo que os mulatos e negros livres formavam um grupo de empresários aguerridos e atentos para as novas possibilidades de negócio.
Ao mesmo tempo, os brancos tinham como fazer suas acomodações. Os proprietários mais ricos, os seringues, tinham forte influência sobre os administradores coloniais, de modo que podiam esperar vantagens na disputa institucional. Os brancos pobres tinham um estatuto político superior aos mulatos e negros ricos, de modo que compensavam a inferioridade econômica com o culto de sua posição estamental de votantes.
A mudança revolucionária da franquia eleitoral para os negros e mulatos rompeu este equilíbrio. A simples possibilidade de que os empresários ricos se tornassem também políticos influentes tornou-se muito depressa um rastilho de ódio. Seringues e brancos pobres uniram-se para resistir à perda de exclusividade política. A questão racial os unia mais que as considerações econômicas. Em pouco tempo a questão extrapolou o ambiente das discussões e as armas se tornaram instrumentos para impor as posições em disputa.
As batalhas armadas entre os grupos levaram ao patamar seguinte. Foi preciso transformar capatazes e seus bandos em soldados. Com isso a vigilância nas senzalas foi comprometida. Os mulatos e negros livres aproveitaram as brechas para estimular rebeliões nas grandes propriedades dos seringues: era uma forma tanto de aumentar seus exércitos quanto de diminuir a força dos inimigos.
Um símbolo dessas mudanças logo apareceu: Toussaint L’Overture. Filho de escravo, teve uma trajetória de ascensão social típica de uma época de grande crescimento. Um senhor viu que tinha habilidades e investiu nelas: providenciou aprendizado na escrita (incluiu latim) e cálculo. Com esses instrumentos ele revelou-se um competentíssimo administrador. Ganhou o suficiente para se tornar proprietário. O tempo revolucionário encontrou-o como empresário ativo, pacato e conhecido administrador de fazendas escravistas.
Os novos tempos moldaram outra possibilidade para suas conhecidas capacidades. Tornou-se líder do grupo que reivindicava novas posições. Quando as lutas armadas começaram, organizou um exército de escravos fugidos do cativeiro. Organizou um programa de treinamento racional. A armada cresceu, mostrou-se vitoriosa e foi adquirindo um papel cada vez mais relevante no cenário conflagrado.
A esta altura, enquanto a revolução ia gerando novas camadas de disputa na Metrópole, potências estrangeiras reagiram explorando as debilidades que tudo isso abria no cenário haitiano. A Inglaterra, especialmente, tentou destruir as vantagens que a colônia francesa adquirira na década anterior. Começaram os desembarques de agentes provocadores para pregar a abolição (embora obra de ficção, o filme “Queimada”, com Marlon Brando, é um clássico sobre este momento). Espanhóis e holandeses também deram sua contribuição para abrasar as plantações.
Depois de uma década de combates, Toussaint L’Overture venceu. Foi indicado pela metrópole para o governo colonial do Haiti – o primeiro negro a governar oficialmente na América. Pouco depois o governo metropolitano decretou a abolição da escravidão – também a primeira na América. Tudo isso aconteceu em 1794.
Mas neste mesmo ano Napoleão Bonaparte se torna o primeiro-cônsul (o comandante maior do Executivo) na França. Como parte de seu projeto de poder, tenta resolver o imbróglio entre raça, escravidão e direitos universais fazendo a revolução andar para trás. Atacou em duas frentes.
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No continente americano, consegue retomar o controle da Luisiana dos espanhóis em 1800. Ao mesmo tempo sustenta uma incursão militar comandada por seu cunhado, Charles Leclerc, para tentar derrubar L’Overture e reinstalar a escravidão no Haiti. Depois de uma série de golpes, este consegue depor e prender o governante. Mandado para a França, Toussaint L’Overture morre numa masmorra em 1803 e seu corpo – sem caixão – é jogado numa caverna.
Mas o sucesso foi efêmero. Os chefes negros e mulatos que haviam se adestrado na guerra depõem Leclerc, expulsam os franceses, declaram independência e proclamam a república – tudo isso em 1803.
Percebendo que não seria mais possível manter a escravidão no ambiente político francês, Napoleão Bonaparte vende a Luisiana para os Estados Unidos – que havia acabado de concluir o Pacto Sujo e financiado um governo nacional capaz de gastar – por uma bagatela. A compra de 1803 dobra o tamanho da nova nação.
Ao final de tudo isso, em 1804, o Haiti se tornou a primeira nação do mundo na qual a cidadania era realmente universal para todas as raças. A república tinha liberdade.
Mas não havia mercado.
Naquele momento, toda a organização dos negócios da América ainda se organizava em torno da atividade de comprar e vender cativos africanos – contraparte e paralelo do transporte de mercadorias para a Europa. A atividade complementar a esta era a de vender produtos de outras regiões – fossem os abastecimentos dos Estados Unidos ou as mercadorias europeias.
O Haiti republicano e sem escravidão não conseguiu reorganizar trocas com outras regiões. Tinha gente e tecnologia para produzir, mas não encontrava parceiros. Sem este pilar, os navios de todas as nações simplesmente desapareceram dos portos haitianos. A economia tornou-se simplesmente de trocas internas – e muito pobre.
Embora, ao fim de tudo, a relação entre governos fundados na razão, direitos universais e produção livre tivesse ido avante na América e na Europa, uma nova questão apareceu: passar das ideias iluministas à prática era mais difícil do que parecia – o que nos leva ao Brasil.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 31/05/2019