Não sou torcedor fanático, pelo menos não sempre. Prefiro o estilo hibernante e discreto, que evita sofrer durante as fases ruins do clube e mantém algum grau de racionalidade em tema dominado por sentimento.
Aqueles que não apreciam o esporte ou o futebol são incapazes de entender o fanatismo. É um jogo com um bando de sujeitos correndo atrás de uma bola e cujo resultado não gera consequências tangíveis no mundo real. A composição atual do time é totalmente distinta daquela de 15 anos antes, mas não importa: o fanático segue torcendo como se fosse o mesmo time. O craque da outra agremiação é odiado, mas, ao ser contratado, vira ídolo. No fundo vibra-se exclusivamente por um uniforme, o símbolo perene.
Quando o time perde, o torcedor padece de violenta perda psíquica tal qual houvesse sofrido um desastre financeiro, amoroso ou familiar. E, quando é campeão, toma emprestada a glória de terceiros como se seu grito ou sua meia predileta explicassem a vitória.
Porém, o futebol não é só um jogo. É capaz até mesmo de suspender guerras, como na Costa do Marfim, de Drogba, e na Nigéria, devido ao Santos de Pelé.
O futebol imita a vida. No campo, vale o mérito. Aqueles que treinam mais têm mais sucesso. Não há espaço para enganação, pois o resultado é o que importa. É irrelevante a opinião sobre jogar bonito ou não. Os que vencem crescem.
Na sociedade é igual: o empreendedor que entrega o melhor resultado em qualidade e preço prospera. No mercado, vende o que o consumidor deseja, não importa se críticos considerem carente de beleza ou sofisticação. Jazz vende menos que funk, filme com final feliz vende mais que obra-prima. Gosto não se discute, nem paixões.
Assim como uma boa gestão de um governo enxuto permite o melhor desempenho da economia, uma boa gestão do clube potencializa o melhor em campo. A melhora da gestão do Flamengo é um exemplo. Em 2012, tinha R$ 800 milhões em dívidas para R$ 200 milhões de receita, com risco de sequestro de bens, em ambiente de esvaziamento do futebol carioca e crescente interesse da juventude por clubes internacionais. O potencial abstrato de contar com 40 milhões de adeptos espalhados pelo Brasil não era aproveitado.
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Nos seis anos de gestão de Bandeira de Mello, o clube se transformou e reduziu a dívida para menos de R$ 400 milhões, e a receita alcançou mais de R$ 500 milhões, com lucro.
A gestão abriu mão de contratações e títulos para sanear as finanças. Foi preciso disciplina, aperto e se abster de buscar resultados não sustentáveis, em prol de gerar as condições de êxito sustentado. Entregou o clube à atual gestão com R$ 100 milhões em caixa para novas contratações.
Em menos de um ano, em que pese a fatalidade do Ninho do Urubu e a trágica morte daquelas crianças, o Flamengo conquistou o Brasileirão e a Libertadores, sob o comando do obcecado português Jorge Jesus.
O governo está em mais apuros do que o Flamengo de 2012 e deve focar a redução de gastos. Como no futebol, as contas não estão saneadas e, por isso, o time de empresas que gera emprego e desenvolvimento não tem jogado bem. Como consequência, muitos defendem tentações de curto prazo via gastos e dívida. Os políticos fazem bem em ignorar esse devaneio, mantendo a trajetória de saneamento das contas públicas.
O futebol é um fim em si mesmo, alheio à razão pura. O futuro do Brasil e de nossos filhos também. David Hume apregoava que a razão é escrava das paixões. O torcedor concorda e argumenta que essa paixão aglutina, traz pertencimento e esperança de glória. Não há nada de errado em torcer pelo Brasil, mas, sem amplas reformas e a redução do Estado, esse título ficará cada vez mais longe.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 27/11/2019