Esse tema pode ser tratado de duas formas. A primeira, como um direito básico dos cidadãos. Para quem pensa dessa forma, as consequências práticas da flexibilização da restrição ao porte de arma —se acarreta queda ou elevação na taxa de homicídios, por exemplo— são irrelevantes. Trata-se de um direito.
Para aqueles que não consideram portar armas como um direito inalienável do indivíduo, o tema tem que ser tratado de acordo com suas consequências.
Há duas visões. Mais arma reduz crime, pois os criminosos ficam com medo de praticar crimes; ou mais arma eleva crime, pois a maior disponibilidade de armas facilita situação de agressão extrema.
Estatisticamente, é muito difícil saber se armas causam elevação da criminalidade ou o seu contrário. O motivo é que há o efeito Tostines: quando a criminalidade aumenta, há tendência de elevação do porte de armas para defesa pessoal. Pode haver causalidade reversa.
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A evidência empírica para a economia americana parece indicar que mais armas produzem elevação nas taxas de homicídios. No entanto a evidência não é consensual. Remeto o leitor ao excelente sumário da evidência disponível, feito pelo professor do Insper Thomas Conti (goo.gl/He1bT6).
Para o Brasil, o capítulo segundo da tese de doutoramento de Daniel Cerqueira (goo.gl/gxr3jW) indica que no “patropi” mais armas causam maiores taxas de homicídios.
O resultado de Cerqueira é que o efeito é elevado —uma variação de 10% na disponibilidade de armas gera elevação nas taxas de homicídios de 10% a 30%, com valor médio em 20%— e não há variação nos crimes contra o patrimônio. Indica não haver efeito dissuasivo do porte de arma.
Muito provavelmente a maior prevalência de armas eleva os homicídios por motivos fúteis —briga de bar ou de trânsito ou mesmo em família e os feminicídios—, mas não altera a criminalidade economicamente motivada.
O resultado faz sentido. Quando comparamos o Brasil com a sociedade dos EUA, é natural que o efeito da disponibilidade de armas sobre o aumento dos homicídios deva ser muito maior por aqui do que lá.
A base moral que constitui a sociedade americana é o princípio da responsabilização individual. É por isso que, apesar de apresentar renda per capita tão elevada, é tão difícil construir um Estado de bem-estar maior nos Estados Unidos.
A carga tributária por lá é abaixo de 30% do PIB. É a sociedade do herói isolado que, com seu talento e esforço, constrói seu sonho: o caubói no passado e os gênios do Vale do Silício de hoje.
Essa base moral dá origem a um sistema jurídico extremamente sumário e duro. As penas para homicídios são longuíssimas.
Adicionalmente, o sistema jurídico aceita com muita naturalidade o erro jurídico: não é escandaloso naquela sociedade um inocente ser preso. Ou seja, para aquela sociedade, não ser a pessoa errada no lugar errado na hora errada é responsabilidade individual. Se você se meter em confusão, mesmo que inocente, vai para a cadeia. A “culpa” é sua.
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A base moral de nossa sociedade é oposta. Temos enorme dificuldade com o tema da responsabilização individual. Estamos sempre dispostos a perdoar e a dar uma chance. É comum que assassinos primários por motivo fútil e com todos os demais agravantes tenham uma segunda chance após seis anos de prisão, evidentemente se forem pegos.
Nossas instituições e nossos valores são incompatíveis com maior flexibilidade no porte de armas.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 20/01/2019