Valores democráticos têm sido menos valorizados pela sociedade, inclusive pelos mais jovens. Talvez porque não vivenciaram as consequências da ditadura e do desrespeito às liberdades individuais. A inclinação antidemocrática anda lado a lado com a intolerância.
A crise econômica, no Brasil e no mundo, pode ser a explicação para esse retrocesso. Na bonança da década passada, muito foi prometido e pouco foi entregue. No Brasil, os equívocos da política econômica geraram uma crise sem precedentes. O desemprego elevado, sendo de 28% entre os jovens, alimenta o sentimento de desolação e de falta de perspectivas. Tudo isso aumenta o anseio de mudança e a busca de “pulso forte” para “arrumar a bagunça”. Parecem confundir autoridade com autoritarismo.
Esse sentimento faz eco na política. Jair Bolsonaro exulta a ditadura militar, e é o melhor colocado nas pesquisas de voto que excluem Lula. Importantes lideranças do PT flertam com a ditadura na Venezuela, provavelmente para agradar o eleitorado de extrema esquerda. Muitos eleitores não veem gravidade nisso. Julgam que são palavras ao vento que não deveriam ser levadas a sério.
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Não convém brincar com fogo. A democracia no Brasil ainda está em construção. Precisamos de mais democracia, e não de menos. Igualdade de oportunidades, concorrência na política e representatividade no Congresso talvez sejam os pontos onde estamos mais atrasados.
Nossas políticas públicas – como na educação – são concentradoras de renda e perpetuam a pobreza; a política se renova muito lentamente; o Congresso está dominado por bancadas poderosas que não representam a sociedade; e grupos organizados bloqueiam reformas.
Há consequências perversas do déficit de democracia sobre a economia. Um exemplo é nossa triste experiência com a reforma da Previdência. Enquanto a maioria dos países já adota idade mínima para aposentar há mais de duas décadas, o Brasil segue atrasado. Corporações do setor público bloquearam essa agenda nos últimos anos, algo ainda mais grave no contexto de um governo com déficit de credibilidade e de apoio popular. Como consequência, transfere-se renda de pobres (que se aposentam por idade) para ricos, faltam recursos para políticas públicas essenciais e alimenta-se o risco inflacionário.
Vale a pena fortalecer a democracia. Os dados mostram que países mais ricos são os mais democráticos. Há ainda evidências de que países que passam por democratização aumentam sua renda per capita. Daron Acemoglu e co-autores (2005) estimam um incremento de 20% no longo prazo. A razão seria o incentivo a reformas, o aumento da escolaridade, a melhora da provisão de serviços públicos e a redução de turbulência social.
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Defender valores democráticos não é apenas moralmente desejável, mas também recomendável para o melhor funcionamento da economia.
É verdade que a democracia dá trabalho. Reformas dependem da construção de consensos e de muita negociação, bem como do enfrentamento de grupos organizados. Como consequência, as reformas tomam tempo e, muitas vezes, não acontecem. Apesar disso, ainda é a melhor forma de garantir o avanço institucional sólido dos países e, assim, o crescimento sustentado.
No Brasil, o regime militar começou com o apoio da sociedade, e reformas importantes foram implementadas por Castelo Branco. Mas não houve continuidade da agenda de reformas e houve retrocessos em seguida, com muitas distorções causadas no sistema econômico até o fim do regime militar. O resultado foi a “década perdida” dos anos 1980 e a herança inflacionária. Iniciamos o período democrático com a economia em frangalhos.
Avanços ocorreram no período democrático, ainda que lentamente. O Estado brasileiro continua, porém, autoritário na economia, promovendo mudanças de regras, frequentemente, sem critérios e com pouco diálogo, o que acarreta em baixo crescimento. E o Estado continua injusto socialmente. Não há espaço para retrocessos.
Fonte: “O Globo”, 09/08/2018