O professor Richard Moneygrand — um dos brasilianistas mais conhecidos na triste fase da “ditadura militar”, quando eles desempenharam um papel político significativo, falando (justo porque eram estrangeiros ianques) de assuntos interditados aos estudiosos da casa — envia-me uma melancólica mensagem com péssimas notícias. Sua última esposa, Mary Smith, foi diagnosticada com o mal de Alzheimer. Conheci Mary quando Moneygrand, com seus setenta e tantos anos, engavetou-se no seu nono conúbio. A cada livro, um novo amor; dizia-me sorridente aqui em Niterói.
A mensagem do amigo de 89 anos termina meditando sobre os desafios das “ciências sociais”. “Não fomos capazes de prever,” diz ele. “Achamos que era revolução, mas foi golpe. Não entendemos as ironias da vida social. Essa devastadora doença da Mary me leva a um sombrio poente existencial…”
A mensagem terminava com uma pergunta perturbadora: e como é que você, Roberto, está escrevendo os últimos capítulos de sua vida?
Os velhos têm uma vantagem: eles não têm futuro. A mocidade se define pela responsabilidade dos futuros e amanhãs cuja realização cabe em meses ou décadas. Precisamente o que não ocorre na “melhor idade”.
Deu goteira aqui em casa — uma casa velha. Chamamos um telhadista. Ele verificou o apodrecimento das ripas e prometeu um conserto com 20 anos de garantia! Quando mencionei os meus 83 anos, fizemos um acerto realista porque eu não penso mais em termos de décadas…
Com 47 anos, porém, corajosamente publiquei um ensaio chamado “Para uma teoria da sacanagem” no livro “A arte sacana de Carlos Zéfiro” (Editora Marco Zero, 1983), organizado por João Marinho, ao lado de Sérgio Augusto e de Domingos Demasi. Quando escrevia o trabalho, espalhei na mesa do escritório várias revistinhas de sacanagem de Zéfiro, com aqueles desenhos contundentes que a sexualidade é capaz de evocar. Concentrado, não percebi a chegada do meu filho Renato. “Papai” — inquiriu ele com 16 anos e um olhar de censura — “você agora passou a ler livrinhos de sacanagem?”
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Respondi que estava trabalhando duro com as singularidades da sexualidade nacional, como a recorrente analidade e a ausência de homossexualidade que as obras estampavam. A despeito de o assunto ser para muitos desmoralizante e condenável — concluí —, meu interesse pelos livrinhos era eminentemente científico-antropológico.
Não penso ter convencido o filho ou o leitor…
O colunista Ancelmo Gois notificou no GLOBO de 8 do corrente — a propósito de um documentário de Silvio Tendler sobre Zéfiro para o qual dei uma entrevista — que sou um “leitor assíduo de revistinhas de sacanagem.” A observação do querido colunista permite que eu mostre o lado ambíguo do tema, justo a dimensão que teorizei quando jovem. Ela autoriza chamar atenção para o que o erótico oculta: a dimensão moral ou social da palavra. Esse é o aspecto que me transforma num compulsivo observador de todas as “sacanagens” que viram notícias e aparecem nos jornais diários e em certos rituais onde são permitidas e até mesmo obrigatórias, como é o caso do carnaval e da “politicagem”.
Foi essa forma de sexualidade que me tornou consciente de que nasci (e vou morrer) num país onde há sacanas por todo lado. O que são o “Você sabe com quem está falando?”; a censura; o capitalismo relacional que faz tempo denunciei; a corrupção em nome de um ideal; a fofoca e a malandragem; senão sacanagens? Não é uma sacanagem a transformação da governança pública num lamaçal controlado por psicopatas e ladrões?
Os livrinhos de sacanagem de Zéfiro são pinto (com a desculpa pelo trocadilho) perto da grandiosa sacanagem que nas últimas décadas tem dominado o Brasil. Zéfiro falava de um erotismo sem o qual não viveríamos; já a sacanagem da desigualdade social e legal conduz à agressividade e à morte.
Fonte: “O Globo”, 16/10/2019