“O Brasil é nosso. Nós somos diferentes deles”. Nós e eles. Eles e nós. Nós não somos eles, eles não são como nós. Nós somos diferentes, e ser diferente significa ser melhor, naturalmente. Mas, quem são eles? E quem diz agora que nós somos diferentes deles, ou que eles são diferentes de nós? Mais fácil responder a segunda pergunta do que a primeira. Dessa vez, quem disse “nós somos diferentes deles”, quem deu ar de novidade à velha ladainha do “nós” e “eles” cuja história é tão rica em Nosso Brasil foi Jair Bolsonaro.
Cabe digressão exploratória e explanatória. O interesse geral pelo termo “populismo” jamais esteve tão alto, a julgar pelos dados do Google Books NGram Viewer, que compila as menções do termo em publicações desde o ano 1900. Isso mesmo, desde o início do século passado. Nas publicações em língua inglesa, espanhola e portuguesa o aumento das citações de “populismo” é espantoso. Em razão disso, cientistas políticos, economistas, sociólogos, e outros pesquisadores da área de ciências sociais têm se dedicado a destrinchar o que, afinal, é populismo. Não é fácil chegar a um consenso sobre o que significa, já que de Hugo Chávez a Viktor Órban, de Donald Trump a Recep Erdogan, da direita à esquerda, há populistas para todos os gostos.
Jan-Werner Müller da Universidade da Pennsylvania, define populismo a partir de alguns ingredientes: trata-se de uma visão antielitista e antipluralista. O aspecto antipluralista é o mais importante. De acordo com a sua definição, o antipluralismo é a postulação moral de que um grupo representa “nós”, o “povo”, e não permite que qualquer outro grupo da sociedade faça a mesma postulação, os “eles”. Os “eles” são imorais e corruptos. A oposição não é legítima, pois quem não apoia os populistas não é parte do “povo”, não está entre “nós”. Opositores políticos, muitas vezes, são tachados de inimigos do “povo”.
O corolário do que está descrito acima é que o populismo é espécie de política identitária excludente, ou, tribal. Outro renomado cientista político e professor da Universidade da Georgia nos EUA, Cas Mudde, define populismo assim: “O populismo é uma ideologia superficial que separa a sociedade em dois grupos antagonistas – as pessoas “puras” e as pessoas “corruptas” – e afirma que a política deve ser a expressão da vontade geral do “povo”.” Contudo, como na definição de Müller, o povo não inclui toda a sociedade, mas apenas aqueles que se autoproclamam seus verdadeiros representantes.
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Fim da digressão. “Este é o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do politicamente correto, do gigantismo estatal”. “Esta é a nossa bandeira, que jamais será vermelha, só será vermelha se for do nosso sangue derramado para a manter verde e amarela”. Essas duas frases foram proferidas por Bolsonaro em seu discurso de posse. Examinadas sob a ótica das definições acima, entender quem representa “nós” e quem representa “eles”, uma das perguntas do início desse artigo, fica mais fácil.
“Nós” são todos aqueles que não criticam o novo governo, ainda que as críticas possam ser construtivas. “Eles”, o resto, são “comunistas”, “socialistas”, “vermelhos”, e todos esses termos estão inequivocamente associados a gente corrupta, sem escrúpulos, ou que apoia gente corrupta e sem escrúpulos. O bolsonarismo que se instala no País e se manifesta nas redes sociais incansavelmente é identitário e excludente, suas táticas não são apenas semelhantes às táticas do petismo. São as mesmas táticas já que a retórica petista sempre foi populista, ao menos de acordo com a definição atual do termo que nada tem de suas origens no século 19, quando despontou nos EUA. O bolsonarismo é o petismo no espelho com o sinal trocado – não fosse assim, as eleições de 2018 teriam sido diferentes.
Nosso Brasil passou por um ciclo populista “de esquerda” e agora passará por um ciclo populista “de direita”. Dessa frase, a única expressão que importa é “ciclo populista”, pois para populistas de linhagem, “direita” e “esquerda” são apenas acessórios descartáveis a depender da conveniência. Nosso Brasil, ainda que com “Deus acima de todos”, nada tem de acolhedor.
Fonte: “Estadão”, 30/01/2019