Como um museu pode morrer? Afinal, museus têm muito de cemitérios: eles guardam relíquias, e espécimes embalsamados de fauna, flora, artefatos de sociedades tribais desaparecidas e obras de arte; além de livros — muitos livros que, fechados, jazem ao lado dos diários daqueles que passam a vida dentro deles para aprender o que existe do lado de fora. Ficam fora do mundo para vê-lo com suas doenças, traições, erros e sofrimento. Neste sentido, um museu é um palácio de tesouros e de objetos sagrados. De artefatos deslocados no tempo e no espaço, ininteligíveis aos olhos comuns.
Tal perspectiva me ajuda a elaborar a morte do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no qual trabalhei como antropólogo social por cerca de três décadas.
Ao vê-lo ser impiedosamente lambido pelas chamas, pensei nos meus mentores — Luiz de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis, responsáveis pela transformação do seu Setor de Antropologia num dinâmico Programa de Pós-graduação em Antropologia Social que é hoje uma referência mundial.
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O que sentiriam esses fundadores ao ver a catástrofe anunciada pelo total descaso de múltiplos governos, partidos, posicionamentos e hipocrisias tão nacionais e tão isentas do perigo de incêndio? O que diriam eles, que — seja como pesquisadores, professores e administradores, como, aliás, foi o meu caso — jamais perderam o rumo da honestidade intelectual para privilegiar suas preferências ideológicas e partidárias? Essa malvada dialética do ser isso e aquilo vai suicidando o Brasil?
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Em todas as minhas pesquisas entre os jê-timbira, gaviões e apinayé, encontrei quem me tomasse como um disfarçado espertalhão, que se apresentava como etnólogo, mas, de fato, buscava pedras preciosas, ouro ou urânio naquele mato que deveria ser tomado dos índios e destruído para dar lucro. Para muitos, estudar índios era não apenas uma utilidade dos imbecis da minha estirpe, era uma malandragem inteligente para enricar. Até hoje ouço que pesquisar para compreender, e não para tomar partido, é uma mitificação. É triste constatar que não temos neste Brasil, cada vez mais castrado por si mesmo, lugar para o professor, para o estudioso, para o investigador que sabe que não sabe e trabalha na esperança de acrescentar mais um pouco ao saber humano, mesmo seguro de que será inevitavelmente superado e esquecido.
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O Museu Nacional não foi uma vítima somente do descaso. O descaso é o resultado da mais absoluta ausência em nosso horizonte cultural do lugar do professor. O descaso é irmão da nossa aliança com a ignorância, o oportunismo e a esperteza. Ele é filho dileto do abandono dos governos e de governantes orgulhosos de nunca terem lido um livro, mas que se concedem o direito de falar de tudo, sobretudo do que não entendem. Ele é o fruto de uma cultura aristocrática, autoritária e beletrista, que se compraz nos folguedos de poesia e pensa que contar casos é sabedoria. Um museu que morre por falta de apoio oficial é o que se colhe quando se elegem governantes ignorantes e burros-doutores narcisistas, que pensam que entendem de tudo, quando não são meros ladrões patológicos dos bens coletivos. Dessa ópera trágica nacional, na qual o papel de professor é nulo, nasce a indiferença muda que testemunha o assassinato dos museus. Fizemos estádios e reformamos o Maracanã ali ao lado do Museu Nacional, que sequer foi visitado por alguma autoridade. O Brasil é recordista em incêndios de museus, ao lado de ser um fenômeno no que tange ao roubo do povo em seu próprio nome!
Um país no qual a luta pelo poder não tem limites acaba destruindo ideais, valores e a mais chã moralidade. Estudar, investigar e compreender para sondar o escuro e o terror que se escondem em cada um dos nossos corações é algo sem valor. Ai está sem dúvida fósforo que toca fogo nos museus.
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P.S.: Onde estão os milionários brasileiros — formados gratuitamente nas nossas universidades federais — para ajudar na reconstrução do museu?
Fonte: “O Globo”, 05/09/2018