A força-tarefa da Lava Jato em Curitiba decidiu “suspender” os trâmites para a criação de um fundo administrado por uma fundação de direito privado cujos recursos viriam de multa aplicada à Petrobrás com base em acordo celebrado com o Ministério Público Federal (MPF), com a participação do governo americano. A estatal pagará multa de R$ 3,2 bilhões, dos quais R$ 2,5 bilhões serão destinados a “ações de reparação”. A metade desses recursos seria, como pretendido pelo MPF, destinada a esse fundo. O MPF e o Ministério Público do Paraná ocupariam dois assentos no órgão de deliberação superior da fundação.
O recuo da força-tarefa deve ter decorrido do questionamento desse propósito por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Tribunal de Contas da União e pela Procuradoria-Geral da República (PGR), cuja titular arguiu a inconstitucionalidade da ideia perante o STF. Se não for barrada pela Corte maior do País, essa será a maior aberração nas finanças públicas desde Portugal antigo, quando o rei podia fundir suas finanças pessoais com as do orçamento público como se fosse sua propriedade particular, o que Raymundo Faoro chamou de “patrimonialismo” em obra clássica.
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No acordo, o MPF arvorou-se em detentor de poderes exclusivos do Congresso, quais sejam, os de aprovar o Orçamento (artigo 48 da Constituição) e decidir sobre as despesas da União em cada função orçamentária. Multas devem constituir receita pública. O acordo do MPF comete, portanto, duplo erro: o de entregar recursos públicos a um fundo privado, e não ao Tesouro Nacional; e o de admitir que as regras de sua aplicação sejam fixadas por uma organização privada, ainda que sem fins lucrativos.
A assunção pelos Parlamentos do poder de aprovar os orçamentos públicos teve início com a Revolução Gloriosa (1688), na Inglaterra. Até o último período da dinastia dos Stuarts, que terminou com essa revolução, as despesas públicas não estavam inteiramente sujeitas ao processo orçamentário. O Parlamento tinha papel reduzido na definição de gastos públicos. Cabia-lhe basicamente aprovar a cobrança de tributos para financiar o orçamento. Com o Bill of Rights (Declaração de Direitos), de 1689, a supremacia do poder foi transferida do rei para o Parlamento, que assim adquiriu a atribuição exclusiva de aprovar o orçamento.
A esses e outros eventos políticos da Inglaterra, na mesma época, Douglass North e Barry Weingast deram a denominação de “revolução fiscal”. Além de aprovar a lei orçamentária anual, o Parlamento consolidou-se como fonte legítima e única para autorizar a cobrança de tributos e também a expansão da dívida pública. Estabeleceu, ainda, uma então inédita auditoria das contas da Coroa. Uma das consequências da assunção desses poderes foi a queda da percepção de risco dos títulos do Tesouro, que passaram a se equiparar aos melhores da época, que eram os da Holanda. Tudo isso contribuiu para os acontecimentos que deram origem à Revolução Industrial e à ascensão do Reino Unido como potência hegemônica do século 19.
O exemplo inglês foi adotado pela Constituição americana, de 1787, e pela Constituição francesa de 1791. Em ambas atribuiu-se ao Parlamento o poder de aprovar o orçamento e, assim, de destinar a receita pública às despesas determinadas pela respectiva lei. A regra espalhou-se mundo afora e passou a integrar as Constituições de países democráticos (e mesmo de países de governos autoritários, como em parte ocorria no regime militar brasileiro). Esses marcos institucionais se tornaram parte dos avanços civilizatórios em todo o mundo.
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A teoria das finanças públicas resumiu, sob a forma de princípios, as normas que passaram a reger o processo orçamentário. A força-tarefa de Curitiba mostra desconhecer dois desses princípios.
O primeiro, chamado de “universalidade”, diz que todas as receitas e todas as despesas devem compor o Orçamento. A intenção de destinar a um fundo privado as receitas decorrentes do acordo com a Petrobrás é uma infração inequívoca a esse princípio.
O segundo, conhecido como “legitimidade da despesa”, estabelece que nenhum gasto pode ser efetuado sem prévia autorização legislativa. Cada item da despesa pública precisa constar de um diploma legal, no caso, a lei orçamentária anual. A força-tarefa da Lava Jato pretendia que as receitas da multa à Petrobrás fossem destinadas a atividades escolhidas por um fundo privado. Nada mais incorreto.
O Brasil já viveu situação semelhante à intentada pela força-tarefa. Até os anos 1980 havia dois orçamentos, um aprovado pelo Congresso e outro, pelo Conselho Monetário Nacional, o orçamento monetário. Este incluía as receitas de dois tributos, o IOF e o Imposto de Exportação, e várias despesas que eram realizadas sem prévia aprovação do Legislativo, entre as quais os subsídios em favor da agricultura e das exportações e o custeio de órgãos públicos como o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários.
No regime militar, o Conselho Monetário Nacional assumiu poderes típicos do Congresso, mas os respectivos membros eram nomeados pelo presidente da República. Seus atos, em forma de resolução, eram publicados no Diário Oficial e, portanto, objeto do pleno conhecimento da sociedade. Nada disso será feito com o fundo privado imaginado pela força-tarefa. A ideia do MPF de Curitiba é, desse modo, ainda mais ilegítima.
Em boa hora, a PGR inquinou de inconstitucional o plano do MPF de Curitiba. Dificilmente a sua ação não será acolhida pelo STF, que assim determinará a entrega ao Tesouro Nacional dos recursos da multa paga pelo Petrobrás, encerrando no nascedouro a aventura da força-tarefa. Desse modo, a aplicação dos correspondentes recursos caberá, como de direito, ao Congresso Nacional.
Fonte: “Estadão”, 20/03/2019