Mês passado, o mundo embarcou em amplo processo de relaxamento monetário, com vários bancos centrais (BCs) cortando juros. Rússia, África do Sul, Nova Zelândia, Turquia, Coreia a lista é longa, crescente e inclui o próprio Brasil, onde esta semana o BC cortou a Selic pela primeira vez em quase um ano e meio. E este é apenas o início de um ciclo que promete ser longo. Os protagonistas nesse processo, como é natural, serão o Banco Central Europeu (BCE), o Fed, o BC americano, e, em menor escala, o Banco do Japão (BoJ).
O BCE, semana passada, e o BoJ, nesta semana, sinalizaram que não hesitarão em usar todo seu arsenal de instrumentos caso a economia desacelere e a inflação dê sinal de cair abaixo do já reduzido patamar atual. Na área do euro, a expectativa é de que, já em setembro, se cortem os juros, que já estão negativos (-0,4%), em 0,10 ponto percentual. Há também quem aposte que o BCE retomará suas compras de títulos. Fala-se na bagatela de € 30 bilhões em compras mensais.
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O Fed também cortou os juros esta semana, em 25 bps, como esperava a maioria do mercado. Além disso, antecipou o fim do programa de “aperto quantitativo”, por meio do qual vinha contraindo seu balanço. Serão mais US$ 70 bilhões de liquidez do que antes previsto.
Há três motivos principais por trás desse movimento. Primeiro, a queda generalizada da inflação, exceto pelas exceções de praxe, como Venezuela e Argentina. Segundo, a desaceleração da economia global: semana passada o FMI reduziu a projeção de crescimento global para 2019 e 2020. Terceiro, o desejo de evitar a apreciação de suas moedas: como a indústria de transformação tem liderado o processo de desaceleração global, devido à guerra comercial e à crise estrutural do setor automobilístico, parece haver um receio de que moeda forte se traduza em queda das exportações líquidas de manufaturados. Mas aqui já estou especulando um pouco.
Porém, a pergunta que se coloca é: conseguirão os BCs atingir os objetivos desejados? Essa pergunta vale especialmente para a Europa, onde os juros já estão negativos. Como não é fácil para os bancos repassarem juros negativos para seus credores, em especial os depositantes, é pouco claro o quanto isso contribui para estimular o crédito.
E, claro, há que se perguntar até quando os investidores estarão dispostos a comprar títulos com rendimento negativo, especialmente aqueles que não são obrigados a isso por regulações públicas, como bancos, seguradoras e fundos de pensão, em uma nova espécie de repressão financeira. Já há no mundo US$ 13,5 trilhões em títulos que rendem juros negativos. Na Suíça, por exemplo, todos os títulos públicos pagam retornos negativos, inclusive papéis que vencem em 2064.
Os investidores parecem felizes, ou acomodados, em comprar esses papéis porque, com os seus retornos caindo cada vez mais, os ganhos de capital mais do que compensam os juros negativos. Mas isso é uma bolha típica. De fato, já houve quem, de brincadeira, sugerisse que na próxima rodada de afrouxamento quantitativo os BCs comprassem tulipas.
Isso tem levado alguns analistas a prever que a Europa estaria caminhando para virar um novo Japão, com crescimento e inflação muito baixos. A própria transição demográfica na região contribuiria para isso. E há também quem, com a mesma lógica, fale na europeização dos EUA.
É nesse contexto que achei interessante o post de Ray Dalio, sóciofundador do hedge fund Bridgewater, em que defende que podemos estar à beira do que ele chama de uma mudança de paradigma (ver bit.ly/2SJXcrH).
Dalio argumenta que, depois de um longo período em que determinado padrão de comportamento (o paradigma) prevalece, tendemos a pensar que ele vai durar para sempre, esquecendo que nele se acumularam desequilíbrios que acabam gerando rupturas e mudanças de paradigma. Ele sugere que essas rupturas ocorrem em geral após cerca de 10 anos, exemplifica essa ideia olhando a economia americana desde os anos 1920, e propõe que podemos estar próximos a uma nova mudança.
O que levaria a essa mudança de paradigma? Um, o fracasso de novos estímulos monetários em promover o crescimento, pelos motivos vistos acima. Outro, as tensões políticas resultantes da piora da distribuição de renda nos países ricos, que estaria por trás da ascensão do populismo e do enfraquecimento dos partidos tradicionais – e da própria democracia liberal, o que na minha visão já é por si só uma mudança de paradigma. Essa piora distributiva seria causada pelo avanço tecnológico, a globalização e a própria política monetária, por elevar a riqueza financeira de detentores de títulos de dívida e ações.
+ de Armando Castelar: Que Brasil é este?
A pressão política e a incapacidade da política monetária em gerar crescimento levariam a políticas fiscais expansionistas, com os BCs financiando os tesouros. Em algum momento isso dispararia a inflação, mas os BCs não reagiriam elevando juros, por receio de causar uma grande crise financeira, devido ao elevadíssimo
endividamento dos governos e das empresas. A solução seria deixar a inflação alta corroer o valor dos créditos detidos pelos investidores, até que fosse possível outra vez adotar políticas monetárias restritivas.
Obviamente, não dá para dizer se algo assim ocorrerá, mas a provocação é instigante.
Fonte: “Valor Econômico”, 02/07/2019