O presidente Jair Bolsonaro acaba de levar um pito do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, por ter devolvido ao Congresso cópia de medida provisória (MP) ali antes derrubada. Ele próprio reconheceu que havia errado, embora tenha atribuído a iniciativa a um assessor do qual não declinou o nome. Antes disso havia encaminhado ao mesmo destinatário outra MP, transferindo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia para o da Justiça. E os parlamentares o derrotaram, mantendo a inteligência financeira subordinada ao primeiro. Agora resolveu desviar aquele órgão para o Banco Central (BC). Um vaivém descabido, dirá qualquer brasileiro sensato. Mas o chefão não terá violado a Constituição. O Congresso é que poderá alegar que não há urgência, já que a subordinação do Coaf foi decidida faz muito pouco tempo.
O que motiva o chefe do governo a nunca se satisfazer com a subordinação do Coaf? Quando a MP foi para o Senado, o capitão dissuadiu a bancada de seu partido, o PSL, de derrubar a decisão da Câmara, passando o órgão para a jurisdição de Paulo Guedes. Para tanto argumentou que Economia e Justiça são pastas do mesmo governo. Governo, aliás, no qual ele diz que manda e não admite dúvidas quanto a isso, não sendo, portanto, um “presidente banana”. Mas sem fazer muita questão de parecer, como a muitos parece, um chefe abacaxi. De qualquer maneira, seu argumento foi abatido em poucos dias. Moro tinha nomeado Roberto Leonel presidente do Coaf. Paulo Guedes o manteve. Mas o incauto burocrata criticou o presidente do STF, Dias Toffoli, pelo decreto infame de proibir partilha de informações do órgão, do BC e da Receita Federal com o Ministério Público em investigações. Leonel caiu em desgraça não por Toffoli ser a mais nova flor do orquidário de Jair. Mas por este não admitir pôr em risco a interrupção do inquérito do filho no Ministério Público sobre eventuais maracutaias contábeis na Assembleia Legislativa do Rio.
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Qualquer pai agiria no limite para proteger um filho? No caso, é possível argumentar que um bom progenitor, em vez de comprometer a própria reputação no exercício de um cargo público de altíssimo poder, exigiria do descendente que provasse a inocência que alega ter no decorrer do processo jurídico, com defesa baseada em fatos. Recorrer ao rábula reprovado em dois concursos para juiz a fim de paralisar uma investigação, providência a que o primogênito havia recorrido insistentemente, é, na prática, reconhecer a culpa dando uma carteirada. E pior ainda: dever um favor desses não favorece a quem deve nem a quem se deve. Este, aliás, aproveitou o ensejo para beneficiar sua consorte em idêntica martelada.
Não se deve, contudo, esperar do Congresso reação altiva e apropriada a essa inútil tentativa de tergiversar. Até porque, nesse quesito, o Poder Legislativo está muito distante de qualquer condição que lhe permita fazê-lo, como em momentos pretéritos, caso da histórica recusa a punir o deputado Márcio Moreira Alves, que o levou ao fechamento das portas manu militari na época tão venerada pelo capitão-em-chefe. Antes de se porem diante dessa possibilidade, os senhores que se dizem representantes da cidadania a achincalharam ao aprovarem com a pressa de quem foge do flagrante um projeto para enjaular o xerife e soltar o bandido. A vilania da tal lei contra o abuso da autoridade começa na autoria do amoral senador Renan Calheiros. E continua no desprezo ao regimento interno, numa votação simbólica de líderes de partidos sem expressão de um texto que terá graves consequências sobre o combate ao crime organizado e à corrupção, que afligem a Nação desprotegida.
O chefão da Câmara, Rodrigo Maia, eleito na bacia das almas e levado à chefia da Mesa por um acordão que reúne suspeitos, acusados e condenados do Centrão e da esquerda, fugiu da votação nominal.
Filho e cúmplice do ex-prefeito do Rio Cesar Maia, herdou do pai o amor pelo Botafogo, que inspirou seu codinome aos pagadores de propinas da Odebrecht, e enxovalhou a boa imagem de Ulysses Guimarães, pois houve quem tivesse a coragem de equipará-los. As chaves do céu por um átimo também estiveram nas mãos do chefe do plenário da cumbuca emborcada, Davi Alcolumbre, o Batoré. Liberado pela presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, do apodo de investigado, por ter sido arquivado o inquérito do Ministério Público Eleitoral sobre suas contas de campanha, o amapaense não se sentiu confortável no papel de herói da eleição para presidência do Senado. Para começar, em cumplicidade com o relator da investigação sobre a fraude eleitoral de uma disputa com 81 votantes e 82 votos, Roberto Rocha (PSDB-MA), cancelou-a, por não ser capaz de ver provas em fato filmado e transmitido pela TV Senado.
Assim como Toffoli, que trocou a fidelidade ao PT por um lugar perto do sol Jair, o novo Davi parece bater às portas que levam ao velho Renan com a mesma sem-cerimônia com que atende aos cochichos do presidente, servindo aos dois senhores, como execra a fábula bíblica. Ensaboa as mãos sujas pela morte da CPI da Lava Toga com a mesma cortesia com que manobra nos bastidores para a Casa autorizar o caçula do clã Bolsonaro a ocupar a embaixada em Washington.
Paulo Melo, assistente de Walter Lima Jr. no filme Menino de Engenho, citou Coriolano, de Shakespeare, para resumir a cena: “Estais tão seguros quanto um carvão em brasa sobre o gelo ou o granizo exposto ao sol. Vossa virtude se resume em exaltar aquele que foi derrubado pelos próprios delitos e em maldizer a justiça que o puniu. Quem merece a glória merece vosso ódio; e vossas afeições são os apetites de um doente que deseja principalmente o que lhe possa piorar a doença. Aquele que depender de vosso favor nada com nadadeiras de chumbo e com juncos derruba carvalhos”.
Fonte: “Estadão”, 21/08/2019