O Brasil está parado por conta de uma política fiscal apertadíssima, resultado da obsessão com o ajuste fiscal de curto prazo que condena o país ao baixo crescimento, um exemplo claro de “austericídio”. Ou, pelo menos, é esta a “narrativa” (sempre ela!) que nos tentam impingir as viúvas da Nova Matriz Econômica, ignorando, como de hábito, o que dizem os dados.
O Tesouro Nacional empreende um esforço louvável para produzir números fiscais que abarquem todos os níveis de governo no país, e não apenas o conjunto de dados referentes ao governo federal, que cobrem o período desde 1997. Um novo conjunto de informações, denominado Operações do Governo Geral (OGG), que pode ser encontrado no site www.tesouro.fazenda.gov.br/-/estatisticas-de-financas-publicas, consolida receitas e despesas do governo central, estados e municípios desde 2010 em bases trimestrais. Isto nos permite não só uma visão mais completa do estado das finanças públicas, como também uma localização mais precisa das fontes de desequilíbrio.
Mostra, por exemplo, que em 2018 o governo geral gastou nada menos do que R$ 3,34 trilhões (quase metade do PIB!), incluindo o pagamento de juros, enquanto em 2014, último ano da Nova Matriz, o valor (a preços de 2018) havia atingido R$ 3,20 trilhões. Já o gasto primário, isto é, deduzidos os juros, que era R$ 2,63 trilhões em 2014, chegou a R$ 2,72 trilhões em 2018.
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O suposto aperto fiscal é, portanto, uma lenda urbana. O que transparece na crueza dos números é muito simples: (1) houve aumento de gastos nos últimos anos (R$ 140 bilhões); e (2) este aumento resultou, em maior parte, da elevação do dispêndio primário (R$ 90 bilhões).
O culpado é o suspeito de sempre: o gasto previdenciário (nos três níveis) subiu pouco mais de R$ 150 bilhões no período (de R$ 1,06 trilhão para R$ 1,21 trilhão), mantendo a dinâmica observada no quadriênio anterior. Nem todo terraplanismo acerca da questão previdenciária consegue negar este fato.
Houve também expansão dos gastos com o funcionalismo, pensões e aposentadorias à parte (porque já incluídas na rubrica anterior): R$ 36 bilhões, de R$ 881 bilhões para R$ 917 bilhões.
Assim, funcionalismo e previdência, tomados em conjunto, chegaram a R$ 2,13 trilhões no ano passado, R$ 190 bilhões acima do observado em 2014. Diga-se, aliás, que desde 2010 estes gastos aumentaram em todos os anos a um ritmo médio de R$ 56 bilhões/ano. Houve modesta redução de ritmo depois de 2014 (provavelmente por força da aceleração da inflação em 2015 e 2016), mas em momento algum registrou-se diminuição destas despesas.
A contrapartida é a redução dos investimentos e dos serviços prestados à população. O investimento dos três níveis de governo caiu de R$ 162 bilhões em 2014 para R$ 97 bilhões em 2018, abaixo das estimativas da depreciação do capital público. Já as aquisições de bens e serviços (mais importantes no caso dos governos municipais e estaduais), que refletem a provisão de serviços públicos (como medicamentos, merenda, suprimentos, etc.) caiu R$ 25 bilhões.
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O quadro que emerge destes números tem muito pouco a ver com o mito da austeridade. Embora o investimento e a prestação de serviços tenham sido reduzidos nos últimos anos, não é verdade que isto resulte de um ajuste fiscal a qualquer custo. Pelo contrário, origina-se de uma dinâmica de gastos que privilegia previdência e funcionalismo (em boa parte pela intersecção destes dois conjuntos) em detrimento da infraestrutura (que o digam os viadutos paulistanos) e os serviços públicos.
Começamos agora, com a aprovação (ainda parcial) da reforma da previdência, a moderar este desequilíbrio, mas a magnitude expressa nos números acima indica que se trata apenas do início de um caminho longo e difícil, que se torna ainda mais longo e difícil graça a lendas urbanas acerca de “austericídio” e quejandos.
Análise econômica não prescinde de dados; já a “narrativa” vive de sua negação.
Fonte: “A Mão Visível”, 13/08/2019