Para parte da opinião pública, a negociação entre governo e Congresso é, ela própria, uma forma de corrupção. Ela parte de uma divisão maniqueísta entre um governo virtuoso e puro e um Congresso maligno.
Quem pensa assim está se deixando levar cegamente por um discurso oportunista (que parte de certas alas do governo), mas o sentimento de indignação que está na base desse protesto é justo. Na raiz da revolta está um anseio por ética que foi longamente desprezado pela classe política. Chegamos a um nível tal de desvalorização que é tido como natural que um deputado vote num projeto única e exclusivamente se seu partido receber um benefício em troca.
Em reação a isso, ganha popularidade a ideia de que os deputados deveriam votar num projeto única e exclusivamente porque concordam com ele. Tudo o que passa disso é imoral. Essa visão está profundamente equivocada por ignorar a natureza da política.
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De onde vem esse ódio todo?
Política não é uma discussão abstrata de ideias sobre o que é bom para o país. Esse questionamento deveria estar no horizonte de toda a discussão, mas o fato é que a política só existe porque há conflito entre o bem de diferentes grupos. O Estado controla recursos públicos e também cria regras que valerão para todos. O uso dos recursos e os efeitos das leis impactarão de maneira diferente diferentes grupos.
Mesmo dentro de um projeto como a reforma da Previdência, pelo qual, no longo prazo, praticamente todos ganharão, resta que, inicialmente, alguns perdem mais e outros perdem menos. Mesmo aceitando a necessidade da reforma, é preciso definir como distribuir esses cortes.
Essa definição de como distribuir os recursos pode se dar de duas maneiras: pela força bruta —a lei do mais forte— ou pela negociação dentro de regras pré-estabelecidas: a política. Cada deputado ali representa interesses específicos e legítimos da sociedade, e é esperado dele por seu eleitorado que consiga entregar resultados. Para isso, tem que negociar: ceder aqui, conquistar ali, montar coalizões e ocupar espaços que permitam entregar bons resultados a quem ele representa.
Jair Bolsonaro, em sua longa estadia na Câmara dos Deputados, participou desse jogo. Defendia interesses (principalmente dos militares) e participava de articulações. Votou, por exemplo, junto com seu partido, o PP, por muitos projetos do governo do PT, de quem formavam base.
Em outros momentos, votou por aumentos no próprio salário e por mais benefícios para os militares. Ninguém o condenaria como “corrupto” por ter agido assim.
Projetos importantes para a economia brasileira dependeram de articulação bem-feita entre governo e Congresso graças à articulação política.
O Plano Real, no governo Itamar, foi objeto de debates intensos, em que o então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso foi peça-chave para garantir os votos, inclusive explicando devidamente seu funcionamento para os deputados.
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Em 2000, o Congresso aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal; o apoio ao governo era tão sólido que a aprovação se deu sem grandes dificuldades. A articulação política feita dentro da lei garantiu importantes vitórias para o Brasil.
A corrupção é uma chaga brasileira que corrói nosso processo político. Mas ela não deve nos indispor contra a política enquanto tal. Sonhos estéreis de revolução e ditadura nada resolvem; apenas trocam a negociação feita sob regras pelo jugo da força bruta, que não é mais honesta nem virtuosa. Se você acha a democracia corrupta, é porque não viu a ditadura.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 26/03/2019