Nesta última semana retornei ao mar e fui acariciado pelo seu doce balanço. Não como um desolado náufrago, mas como um anônimo passageiro do catamarã que, com presteza e conforto, liga uma invisível Niterói (a cidade que ninguém quer conhecer mas onde todos querem morar) a um Rio de Janeiro (que todo mundo tinha que conhecer mas que até hoje sofre do trauma de deixar de ser a capital do país e uma cidade-estado e que, brutalmente descivilizada, promove insegurança).
Ir da casa para o trabalho e do trabalho para casa usando transporte público (bondes, ônibus e as tais “barcas”, que eram metáforas do centro de Niterói) foi um símbolo de minha independência e vida profissional como trabalhador, marido, pai, escritor e, como professor, um permanente estudante de Antropologia Social.
Morando nessa amada Niterói — que significa, dizem os tupinólogos, “água escondida”; uma minibaía obscurecida pela grande “Guanabara”, que, por seu turno, denota em tupi-guarani “seio do mar” —, fui formado tendo como referência a oposição entre o cosmopolitismo hierarquizado e superior do Rio de Janeiro como “Cidade Maravilhosa” e o provincianismo de Niterói.
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O contraste absoluto entre uma urbe maravilhosa e a trivialidade de sua vizinha e irmã gêmea foi, sem dúvida, o núcleo da identidade niteroiense como a cara barata de uma moeda cuja coroa brilhava do outro lado do mar. Niterói era uma espécie de não lugar, embora àquela época fosse a capital do Estado do Rio de Janeiro.
Tínhamos um amarelado Palácio do Governo pelo qual eu passava quando ia para o colégio; tínhamos também o Jardim do Ingá e as praias das Flechas e de Icaraí, com suas águas transparentes e tépidas. A segunda terminava num rio seco e num morro; a primeira (a que me deu consciência de mar e “praia” no seu pleno sentido brasileiro) é emparedada pela grande encosta no alto da qual hoje fica o Museu de Arte Contemporânea — que, nessa Niterói aonde se chegava pelo mar, era marcada pelos misteriosos “buracos” do Adão e Eva. Cavernas que remetiam a tesouros de piratas e ao Éden no qual vivíamos sem saber. Ademais, serviam de abrigos para encontros que minha avó classificava como “patifaria”. Pois agasalhados nesses buracos milenares, os amantes não eram ameaçados por policiais, bandidos ou a atrasada moralidade católico-burguesa, mas pela areia. Aliás, a malfadada fórmula — “entrou areia!” — impeditiva do amor de namorados praianos desprevenidos foi inventada, dizem, no “buraco do Adão”, em Niterói.
Nada disso, porém, chegava aos pés do “Rio” dos filmes de Hollywood; da Mesbla, que meu pai chamava pelo nome original francês, Mestre et Blatgé; da Cinelândia; do Pão de Açúcar e do Corcovado. E — é claro — de Copacabana, o bairro no qual nada era impossível.
Daí a piada complacente segundo a qual o melhor de Niterói era a vista do rio. E daí, também, a realística réplica niteroiense de que o melhor do Rio era a vista!
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O doce balanço do mar tirou de mim o peso do amargo labirinto nacional: uma maré autoritária e personalista atravessada por uma igualmente indesejada senão maldita correnteza liberal. Vivemos mais uma travessia com a diferença que países não cruzam baías, mas oceanos históricos. Em mares nunca dantes navegados, eles precisam de bons pilotos.
Sobre eles, diz o pensador estoico romano Lucius A. Sêneca, há mais ou menos dois mil e tantos anos:
“Duas pessoas se combinam num piloto: uma ele compartilha com todos os outros passageiros porque também ele é um passageiro; a outra o distingue porque ele é o piloto. Uma tempestade o atinge como passageiro, mas não o atinge enquanto piloto”.
Fonte: “O Globo”, 07/08/2019