O anúncio de um novo acordo de divórcio entre Reino Unido e União Europeia (UE) traz uma nova esperança de desfecho para a novela do Brexit, muito embora os termos não estejam claros nem para as partes envolvidas – e ainda haja obstáculos políticos gigantescos a superar.
Em termos práticos, o novo acordo segue o princípio sugerido pelo premiê britânico, Boris Johnson, no início do mês para substituir a ideia que pôs a perder o acordo fechado por sua antecessora, a ex-premiê Theresa May.
Para manter aberta a fronteira entre as Irlandas, exigência do governo irlandês e da UE, Boris criou um mecanismo distinto do malogrado “backstop” (rede de segurança) estipulado no acordo de May, rejeitado três vezes pelo Parlamento britânico.
Enquanto o “backstop” mantinha todo o Reino Unido dentro de uma união aduaneira provisória com a UE até que as partes negociassem um acordo de livre-comércio definitivo (para todos efeitos, isso poderia durar por tempo indeterminado), a ideia de Boris se restringe à Irlanda do Norte. O território norte-irlandês, até hoje em disputa entre Irlanda e Reino Unido, ficaria submetido a um novo regime, identificado como Arranjo Alfandegário Facilitado (FCA, na sigla em inglês).
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Tal regime cria uma realidade exclusiva aos produtos que circulam pela Irlanda do Norte e exige o estabelecimento de controles entre a Grã-Bretanha e a ilha irlandesa. Formalmente, todo o Reino Unido sairia da união aduaneira europeia. Mas os produtos transportados à Irlanda do Norte continuariam submetidas a normas e regulamentos europeus, de modo que pudessem transitar livremente para a Irlanda – ao contrário dos produtos circulando no resto do território britânico.
Para os europeus, isso foi suficiente para preservar a liberdade de movimento e comércio na ilha irlandesa – e garantir que nenhum posto fronteiriço ou alfandegário se tornasse alvo de terrorismo como marca de uma nova divisão do país. Para Boris e os partidários do Brexit, a saída da união aduaneira garante a liberdade de fechar acordos de livre-comércio com outros países sem aval da UE.
Quem acabou rifado nas negociações foram os norte-irlandeses do Partido Unionista Democrático (DUP), cujos dez deputados no Parlamento britânico sustentam o governo conservador de Boris. Em deferência a eles, a proposta inicial concedia ao Stormont, o Parlamento norte-irlandês, a autonomia para aprovar as regras estabelecidas pelo acordo de divórcio, depois reexaminá-las a cada quatro anos. Agora, o Stormont perdeu o poder de veto inicial. Só será chamado a opinar depois de quatro anos.
A UE resistia a se tornar refém de um legislativo regional. Também exigiu de Boris uma concessão ainda mais relevante: a manutenção, em todo o território britânico, das regras ambientais, trabalhistas e outras normas europeias, antes mesmo de qualquer negociação futura sobre a relação comercial com o bloco. Tais regras constavam da proposta de May para o “backstop” e agora foram retiradas do acordo principal, mas mantidas na declaração política que acompanha o texto para orientar as negociações futuras.
Líderes do DUP já anunciaram que votarão contra o acordo no Parlamento britânico. Para aprovar qualquer texto, Boris depende não apenas do DUP. Precisará ainda convencer os 21 rebeldes que expulsou do próprio partido, depois de desafiarem sua orientação e votarem a favor da lei que o obriga a pedir um adiamento da data do Brexit – ainda oficialmente marcado para o próximo dia 31 –, caso não consiga apoio parlamentar para um acordo até dia 19.
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Para compensar os votos eventualmente perdidos entre os norte-irlandeses e conservadores refratários, Boris conta com o apoio de dissidentes trabalhistas, com quem tem mantido contatos de bastidores nos últimos dias. Conta também com a ameaça do divórcio sem acordo. Desta vez, ela poderia partir não dele – já que a lei o obriga a pedir o adiamento –, mas da UE, que poderia negar esse pedido caso o Parlamento britânico rejeite os termos fechados nesta manhã.
O Parlamento já convocou uma sessão extraordinária para o próximo sábado – a primeira desde a Guerra das Malvinas. É duvidosa, contudo, a maioria com que Boris diz contar. Até porque, até agora, ninguém teve a oportunidade de examinar o texto com calma.
O tempo também é curto para os líderes do Conselho Europeu, reunidos em Bruxelas até amanhã. Não haverá aprovação formal dos 27 países em prazo tão exíguo. Mesmo até o final do mês, ela é improvável. Um novo adiamento técnico daria tempo a todos para deglutir e digerir os termos do acordo – e, em especial, a Boris para provar se tem mesmo a fugidia maioria parlamentar que tem emperrado o Brexit.
Fonte: “G1”, 17/10/2019