O maior recado do México ao Brasil hoje não vem do futebol, mas da política: a vitória esmagadora nas eleições de ontem (com mais de 30 pontos de vantagem sobre o segundo colocado) de Andrés Manuel Lopes Obrador, conhecido pela sigla AMLO, demonstra a força e a persistência do populismo de esquerda na América Latina.
Apesar do fervor esquerdista no discurso, AMLO não é um Hugo Chávez. Sua campanha guarda semelhanças com a do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. Ao mesmo tempo que prometia mudanças, tentava tranquilizar empresários e mercado financeiro sobre o compromisso com responsabilidade fiscal, autonomia do banco central e contratos estabelecidos em gestões anteriores.
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“Não atuaremos de maneira arbitrária, não haverá confisco nem expropriação de bens”, afirmou AMLO no discurso de vitória. “As mudanças serão profundas, mas se darão com respeito à ordem legal estabelecida. Haverá liberdade empresarial, de expressão, de associação e de crença. Estarão garantidas todas as liberdades individuais e sociais, assim como os direitos consagrados na Constituição.”
O México tem executado há 30 anos com sucesso uma agenda de integração à economia global, apoiada na responsabilidade fiscal e na manutenção de um ambiente favorável aos negócos. Reformas estruturais em diversos setores resgataram a produtividade, atraíram investimentos externos e, desde 2009, o país registra o mais longo período ininterrupto de crescimento econômico.
Mas a taxa média, de 2% ao ano, tem sido insuficiente para mudar a qualidade de vida da população. Sobretudo num ambiente marcado pelos dois problemas que deram o tom da campanha de Obrador: violência e corrupção.
Em 2017, o país viveu a maior onda de homicídios dos últimos 20 anos, resultado sobretudo da disputa territorial entre os carteis de drogas que o governo tem se revelado incapaz de deter. Nos últimos quatro anos, 9 dos 32 governadores foram investigados, indiciados ou presos em escândalos de corrupção.
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Em agosto, o ex-presidente da Pemex (a estatal mexicana do petróleo) Emílio Lozoya, aliado do presidente Enrique Peña-Nieto, foi acusado de ter recebido propinas de US$ 10 milhões da Odebrecht. O próprio presidente Peña-Nieto foi envolvido num escândalo como beneficiário de uma casa de US$ 7 milhões.
“A transformação será desterrar a corrupção de nosso país”, disse AMLO ontem depois da vitória. Seu discurso segue a receita mais básica da cartilha populista: o país está dominado por uma máfia, uma elite que promove reformas “neoliberais” em benefício próprio – que só ele pode combater. Seu modelo é o ex-presidente Lázaro Cárdenas, uma espécie de Getúlio mexicano, que nacionalizou a indústria do petróleo em 1938.
Mas, assim como Lula ou Getúlio, AMLO é um veterano da elite política mexicana. Começou nos anos 1980 no Partido Revolucionário Institucional (PRI), o longevo partido que governou o país por mais de 70 anos (até o ano 2000). Rompeu com o PRI depois da fraude que, nas eleições de 1988, impediu a vitória do filho de Lázaro, Cuauhtémoc Cárdenas, com quem se uniu para fundar o esquerdista Partido da Revolução Democrática (PRD).
Depois de duas derrotas em eleições presidenciais (2006 e 2012), AMLO deixou o PRD para reunir um grupo independente, submetido caninamente a seus desígnios. A iniciativa resultou, há quatro anos, no Movimento de Regeneração Nacional (Morena) – que o levou à vitória ontem sobre os candidatos do PRI e do PRD.
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O sucesso se deveu à postura ambivalente de AMLO, que permitiu ao Morena abrigar simpatizantes de Chávez ou Fidel Castro, esquerdistas das universidades, evangélicos, artistas, atletas e empresários com inclinações à esquerda – um “saco de gatos” não muito diferente do que já foram o MDB ou o próprio PT aqui no Brasil.
A maior dificuldade dessa estratégia política surge na hora de governar. O maior temor do mercado é que o populismo de AMLO represente um retrocesso nas reformas que abriram o setor de energia e petróleo à competição estrangeira em 2014 e atraíram US$ 200 bilhões em investimentos nos próximos anos.
Embora os preços da telefonia e da eletricidade tenham caído, os de gás, diesel e gasolina subiram. A opinião pública não acredita na abertura ao setor privado. De acordo com uma pesquisa recente da Brookings Institution, mais de 60% dos mexicanos defendem uma política de controle de preços da eletricidade e da gasolina.
A visão econômica de AMLO está inspirada no estatismo e no fechamento comercial, protagonizados por seu ídolo Cárdenas, num tempo em que o México produzia quase tudo aquilo que consumia – e, naturalmente, era um país muito mais pobre e miserável. A principal dúvida é como essa visão se traduzirá na prática, num momento em que a economia mexicana está integrada nas cadeias globais de produção e acordos de livre-comércio, como o Nafta.
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Em suas diatribes na campanha, AMLO não poupou críticas ao presidente americano, Donald Trump. Entre janeiro e março de 2017, esteve nos Estados Unidos e atacou a “hispanofobia” de Trump em discursos, depois reunidos no livro Oye, Trump (Escuta aqui, Trump). Comparou-o a Hitler e, em janeiro passado, advertiu que, se Trump faltasse com o respeito, o colocaria “em seu devido lugar”.
Paradoxalmente, a visão isolacionista que ambos têm da economia não é tão diferente assim. Assim como o estilo populista com que tentam despertar o sentimento popular. Qual será a reação de AMLO na renegociação do Nafta ou na disputa em torno das políticas migratórias?
Questionado sobre o muro na fronteira pelo repórter Jon Lee Anderson, AMLO disse que, se Trump fosse adiante com ele, “o denunciaria à ONU por vilar direitos humanos”. Depois acrescentou que “não era prudente atacar Trump diretamente”. E se disse disposto a negociar uma nova relação com o vizinho. Trump saudou a vitória de AMLO num tuíte. A aproximação recente do tirano coreano Kim Jong-un demonstra que tudo é possível – até mesmo uma amizade entre Trump e AMLO.
Fonte: “G1”, 02/07/2018