“Marxismo cultural” é uma teoria da conspiração que visa a explicar e dar um sentido a um fato que, esse sim, existe e é problemático: o predomínio intolerante da esquerda em diversos âmbitos da cultura nacional.
Um ponto de partida de que poucos discordariam: em certos âmbitos da cultural —como universidades, órgãos de imprensa, artistas— há mais gente com visões que podem ser classificadas no amplo balaio de gatos da “esquerda”. Em muitas redações ou faculdades, os votos foram muito mais para políticos de esquerda.
O marxismo cultural vai além da mera constatação da predominância da esquerda: ele dá a ela o sentido de um projeto.
Ele postula que essa realidade é produto da ação concertada de alguns indivíduos que planejam, infiltrando-se nessas instituições, dominar o país e instaurar o comunismo ou algum outro regime que conjure imagens de pesadelo. Recupera o medo dos “bolcheviques” que estariam prestes a dominar a sociedade (tão bem manuseado pelo nazismo alemão).
Assim, um professor universitário que defenda o Acordo de Paris ou um jornalista que votou no PSOL não são pessoas —assim como você— navegando um oceano de opiniões e atitudes, mas agentes de uma agenda em comum que visa a destruição da família, da religião e da propriedade.
E mais: de uma agenda dotada do poder de moldar a cultura. Esse projeto é tramado nas mais altas esferas do poder e controla os rumos da sociedade, e portanto é maléfico por definição.
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Quando vai para o terreno da história, a teoria é risível. Os autores da Escola de Frankfurt, que passaram suas vidas tentando ler um mundo que parecia esmagar suas crenças e seus ideais, sendo hostilizados inclusive por grande parte da esquerda de sua época, foram transformados em grandes engenheiros por trás da transformação da cultura.
Nem parece que Benjamin cometeu suicídio perseguido pelo nazismo e que Adorno, no fim da vida, lamentava amargamente as rebeliões estudantis de 68.
O elemento conspiratório exime o sujeito de argumentar contra as pautas específicas. Será que, dentre as bandeiras de esquerdas, não há acertos e coisas boas além de erros?
A pergunta nem surge, porque não se está diante de interlocutores sinceros, e sim de uma unidade maligna que busca nos destruir. A consequência lógica é que nós queiramos destruí-los também.
Quando a realidade mais simples é confrontada, o sentido moral do combate desaparece. Há pessoas que defendem diversas bandeiras e lutam por elas.
Professores, jornalistas, artistas e outros são seres humanos, com seus preconceitos e vieses. Gostam de se cercar de pessoas que pensam parecido, formam panelinhas, podem ser intransigentes quando alguma opinião de fora desafia suas crenças.
Há um problema real de falta de diversidade ideológica e respeito à divergência intelectual e política nos âmbitos com predominância do pensamento de esquerda. Contudo, isso é totalmente diferente de afirmar que eles são canais de engenharia social visando —e ainda com sucesso!— transformar a cultura por via dessas instâncias
A história não tem um sentido claro nem um titereiro secreto ditando os rumos dos acontecimentos. Nem os maiores grupos de mídia conseguem moldar a opinião pública. Mais do que produzir as ondas da cultura de massas, os líderes mais habilidosos são aqueles capazes de surfá-las no momento certo.
Vê-la assim nos tira da confortável ilusão de combater um grande inimigo que concentra todo o mal e nos impede de emular justamente os males que julgamos combater.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 22/01/2019