O grande desafio previdenciário brasileiro é que nos convençamos (uns 110 milhões de brasileiros) a poupar para a nossa velhice e pagar um seguro contra perda de renda familiar por morte precoce ou incapacidade de trabalhar. Mas precisa-se de renda para tal. Hoje, 17 milhões de desempregados e desalentados não tem renda e uns 45 milhões de informais não poupam nem compram tal seguro, ou como se fala hoje, não “contribuem”. Nós ainda usamos o verbo “contribuir”, pois ainda pensamos no sistema de repartição, um sistema sem futuro, mas que precisa ser sedado e morrer sem dor, enquanto nos preparamos para um sistema de fundos de pensão privados. O sistema de repartição não resiste à inversão dramática da pirâmide populacional brasileira, não resiste a sua enorme fragilidade à criação de privilégios e não resiste ao fato das pessoas não “contribuírem”, pois geralmente nada perdem se não contribuírem. Criaram-se então sérios problemas fiscais e fricções políticas, visíveis pelo mundo, que trazem injustiça e pobreza, sob o manto político da solidariedade.
A “contribuição” é obrigatória para contratos chamados formais (CLT), portanto, é um enorme imposto sobre o trabalho de metade da população ativa. Mas como o custo do trabalhador CLT é o triplo do que ele leva para casa, fica fácil entender porque uns 45 milhões de brasileiros têm contratos informais de trabalho. Para a maioria é bom negócio, ganham mais do que com contratos formais e nada perdem no futuro. O incentivo é negativo.
O problema está sendo seriamente agravado pela substituição do trabalho humano por máquinas e processos. Primeiro, aconteceu na indústria, de forma lenta. Agora, está acontecendo no setor de serviços, de forma rápida. O trabalho da McKinsey, apresentado em Davos, que mostra as indústrias mais vulneráveis aos robôs, mostra como a primeira sendo a indústria da hospitalidade (hotéis e alimentação fora de casa). Os robôs podem substituir 76% das horas humanas trabalhadas. No Brasil, tal indústria é a maior empregadora e o primeiro emprego de jovens menos qualificados e já são vistos sinais dessa substituição por aqui. Nos EUA, tal substituição é muito visível.
A, jocosamente chamada, “economia dos bicos” é atrativa para os jovens, que, de maneira fácil, absorvem a tecnologia digital, que os permite a trabalhar de forma flexível em várias atividades, sem horários, sem patrão, com poucos engarrafamentos e muitas opções. De acordo com José Pastore (USP), os que vivem de trabalho flexível serão 50% dos trabalhadores em dez anos. Um baixo custo do turnover é vital para qualquer economia, mas nossos políticos e juízes fazem tudo ao contrário, sempre aumentando o custo do turnover. Nos EUA, onde o custo do turnover é muito baixo, uma diminuição no turnover nacional andou assustando todos. Turnover maior é sinal de dinamismo e não de desemprego. E os EUA continuam sendo uma gigantesca máquina de criar empregos, com seu desemprego hoje o menor em 50 anos, apesar do enorme avanço dos robôs e da “economia de bicos”. Novas demandas e ocupações surgem o tempo todo, o trabalho se transforma, existe de fato um competitivo “mercado de trabalho” e o que melhor o governo pode fazer é facilitar as readaptações profissionais e não resistir às mudanças.
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Um dos problemas é a credulidade da maioria dos políticos, acadêmicos e jornalistas de que esta crescente forma de trabalhar é “precária” e que tais trabalhadores precisam de direitos, ou seja, proteção “a priori” por leis que aumentam o custo do turnover. Esses agentes públicos, todos sempre morando e circulando dentro da bolha e num mundo nominal, tem um problema sério: nunca interagiram com um consumidor, um trabalhador, um fornecedor e, nem mesmo, um achacador. Trabalhadores vivem fora da bolha, onde não são apenas as leis trabalhistas que não pegaram. A lei do inquilinato não pegou, assim como contratos de compra e venda de imóveis, carros e motos, que são de boca ou de gaveta. A construção de residências ignora posturas. Contratos formais civis são poucos. É notável que nesse mundo fora da bolha, o conceito de família e amigos é muito mais estendido do que dentro da bolha, pois todos se ajudam muito, fazem pool de renda, de moradia, de logística, uns usam o crédito dos outros com acordos de boca. Fora da bolha, se vê solidariedade e diversidade. Fora da bolha, a sociedade da confiança é muito mais visível e os custos transacionais muito menores.
Poupar voluntariamente para a velhice é uma percepção cultural fácil de ser entendida, desde que o governo não prometa que irá cuidar disso. Na China não se tem tal promessa (os chineses poupam mais de 40% da renda familiar) e nos EUA o problema está bem resolvido com um sistema voluntário de fundos de pensão. Os EUA calibraram bem os incentivos e os pilares sociais e os fundos privados vão muito bem, como mostram recentes depoimentos na Comissão Fiscal do congresso americano (o problema lá são os fundos de pensão dos estados e municípios).
O Chile saiu de um sistema de repartição para de fundos de pensão privados em 1980, mas definindo ser voluntária a troca para os que estivessem no sistema de repartição, 97% dos trabalhadores optaram por mudar. Tal transição no Chile foi possível pelas condições fiscais favoráveis. Mas pelas mesmas razões culturais, incentivos negativos, aumento de longevidade e economia de “bicos”, as pessoas pouparam menos do que o esperado. O sistema ficou mais apoiado do que “prometido” no pilar social, o que provoca frustrações. Em outubro de 2018, o executivo chileno mandou ao legislativo um projeto para incentivar o aumento da poupança e melhorar o pilar social, evitando assim que o Chile não seja um Brasil em mais trinta anos. Mas apesar de vários governos socialdemocratas e socialistas nesses 40 anos de existência do sistema de fundos de pensão no Chile, não houve volta ao velho sistema e a poupança nacional dos fundos de pensão ajudou o Chile se tornar o país mais rico e com menor pobreza da América Latina, com PIB per capita 70% maior do que o brasileiro (em PPP).
Trinta anos atrás, dois anos após a Constituição de 1988, quatro doutorados economistas e um advogado – J. L. Carvalho, C. Faro, H. Portocarrero, C. Monte, F. Oliveira – apresentaram proposta de mudança da aposentadoria de um sistema inter geracional para um sistema de fundos de pensão privados. Primeiro, mostraram que entregar os direitos previdenciários prometidos pela nova Constituição seria missão impossível. De fato, tais direitos foram “desidratados” com várias pequenas reformas e algumas malandragens, mas nunca foram suficientes para evitar a crise atual. Os autores de 1990 agonizaram sobre se deveria ser o novo sistema compulsório ou voluntário. Ao contrário do Chile, concluíram que deveria ser compulsório, para o desespero de Roberto Campos, quando o trabalho foi publicamente discutido com o ministro da Previdência (Antônio Brito) e dois ex-presidentes da Previdência (todos falaram e todos levaram claques), num memorável e enorme encontro no auditório da ABL no Rio, no início de 1991. A proposta era que 10,5% dos salários fossem para um fundo de pensão de escolha do trabalhador e 2,5% para um seguro por invalidez ou morte prematura. Mas, propondo sistema competitivo, com a participação de bancos administradores de fundos mútuos e seguradoras nacionais e internacionais.
A proposta de 1990 é muito semelhante aos balões de ensaio de hoje. Já propunha o fim da aposentadoria por tempo de serviço e estabelecia idade mínima para aposentadoria; estimava em 70% da renda ativa a renda na aposentadoria, número bem aceitável pelo mundo; propunha abolição de todos os encargos sobre a folha salarial e aumento do salário mínimo para níveis que os trabalhadores, mesmo investindo 13% da sua renda em fundos e seguros pessoais, tivessem seus salários líquidos bem aumentados. As únicas diferenças da proposta de 1990 com a proposta atual seriam não precisar de um BPC, transição tranquila do sistema de tempo de serviço para um sistema de fundos de pensão a um razoável custo anual de 1 a 3% do PIB, por 20 anos, e um fundo previdenciário, com ativos existentes na época e impostos gerais, que seria o pilar social para complementar uma renda mínima de aposentadoria. O estudo de 1990 mostrava estimativas muito benéficas para o emprego e poupança nacional e alívio em eliminar nosso complexo sistema gerencial previdenciário (já com 200 mil funcionários em 1990). E seria também um alívio para o sistema político e jurídico ao se livrar dessa pressão constante que é a questão previdenciária. Fundos mútuos e seguros são áreas antigas do setor financeiro privado, onde existe talento, experiência e competição, e onde é possível estimar os riscos. Como frequentemente acontece, tais soluções descentralizadas e privadas, resolvem sérios problemas políticos e jurídicos, desde que o governo não crie monopólios privados.
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Se a proposta tivesse entrado na agenda política e tivesse sido aprovada há 30 anos, não estaríamos neste sufoco fiscal, com estados e municípios não pagando seus funcionários ativos mais necessários e não pagando seus aposentados que não possuem outra fonte de renda. Mas pagando bem, e em dia, o judiciário e os políticos. Não estaríamos com problemas como ter que administrar o BPC, o programa social que mais consome impostos, que mais cresce (15% aa nos últimos 15 anos), o mais abusado e o mais judicializado dos programas sociais (25% das inclusões são por decisão judicial). O governo pretende poupar, no mínimo, 850 bilhões de reais nos próximos dez anos com a reforma paramétrica da Previdência, mas irá gastar 100% desse valor com o BPC, também nos próximos dez anos. Isso se o BPC crescer menos e a judicialização também.
Mas existe uma oportunidade: começar os fundos de pensão logo para jovens que ainda não entraram no mercado de trabalho e para os informais que nunca trabalharam pela CLT. A transição seria muito mais suave. Mas com duas condições: que se removam os principais obstáculos ao crescimento (sem crescimento mais rápido, o Brasil não irá a lugar nenhum em termos de avanços sociais). E a existência de um contrato de trabalho que elimine os custos sobre o trabalho, sejam os impostos e contribuições, sejam os custos do turnover. O emprego no Brasil é criado por 20 milhões de empregadores, que gastam um tempo enorme para conseguir dinheiro para pagar seus cinco trabalhadores, em média, geralmente por semana. Se houvesse um aplicativo aprovado por lei para que tudo isso pudesse feito pelo telefone via bancos e os 13% fossem deduzidos pelos bancos, que depositariam no fundo de pensão da escolha do trabalhador, o sistema seria muito simples, seguro e barato para esses 20 milhões de empregadores. Para os empregados, também seria mais simples e seguro, ganhariam mais e seria o caso de muita propaganda educativa sobre os benefícios a longo prazo dessa poupança pessoal, para mudar o vezo cultural de o governo cuidar da aposentadoria. E, se o salário mínimo fosse por hora (dez reais) ajudaria muito, pois os trabalhadores ganhariam quase o dobro de hoje, talvez dando aos prefeitos o direito de aumentar ou reduzir o salário mínimo. Afinal, eles é que estão perto dos trabalhadores.