O impeachment de Donald Trump estava fora dos planos dos líderes do Partido Democrata. A mudança de curso não se deveu às pressões incessantes da ala esquerda do partido, mas à notícia explosiva de que o presidente chantageou o governo da Ucrânia na tentativa de manchar a reputação de Joe Biden, possível antagonista nas próximas eleições. Não havia outra saída: era deflagrar o processo ou renunciar à última linha de defesa da democracia.
O impeachment foi inscrito na Constituição dos EUA — e replicado na lei maior de diversas nações — para remediar atos dos governantes que ameaçam os alicerces da polis . Trump classificou a iniciativa democrata como “um golpe destinado a tirar o poder do povo”, num curioso eco do grito lançado pelo PT. A mensagem veiculada pelo instrumento do impeachment é essencialmente antipopulista: a legitimidade fornecida pelo voto popular tem limites, definidos pelas leis mais vitais. Em tese, os parlamentares jamais usarão o remédio final como arma nas disputas partidárias normais.
Até o escândalo da Ucrânia, a sombra agourenta do impeachment de Bill Clinton protegeu Trump. No caso de Clinton, a maioria republicana na Câmara conduziu o processo a partir de desvios menores ligados ao affaire Monica Lewinsky. Os eleitores identificaram a natureza partidária da estratégia e puniram os republicanos nas eleições legislativas de 1998.
O impeachment de Dilma Rousseff situa-se a meio caminho entre os casos de Clinton e Trump. A violação da lei orçamentária pelas pedaladas fiscais, um desvio menor à luz de padrões brasileiros, provavelmente não redundaria no afastamento do cargo. Mas, na encruzilhada fatal, Sergio Moro deu publicidade ao diálogo no qual a presidente alçava Lula ao Ministério com o aparente propósito de obstruir procedimentos judiciais. Então, o chão ruiu sob seus pés.
Mais de Demétrio Magnoli
O povo contra o parlamento
Soldados de Caxias
A lei, o povo e o inimigo do povo
Formalmente, Dilma caiu da bicicleta. De fato, foi destronada por um ato de obstrução de Justiça, crime maior. Contudo, atrás do apoio popular majoritário ao impeachment, estava a crise econômica gerada por insustentáveis políticas voluntaristas, numa atmosfera envenenada pelo escândalo de corrupção na Petrobras. O impeachment pertence ao universo da política: em sistemas democráticos, o presidente só é derrubado quando perdeu as condições mínimas para governar.
Clinton conservava condições para governar; Dilma, não. Trump tem maioria no Senado e apoio popular ao redor de 40%. O processo de impeachment pode modificar o cenário — mas, até o momento, ele mantém condições para governar.
O dilema de fundo, não poucas vezes, é optar entre os princípios e as conveniências. Adotando a estratégia do impeachment, os democratas correm um risco eleitoral similar ao dos republicanos que colocaram Clinton na alça de mira. Mas Trump incorreu em crime maior. Pedir o impeachment é, no caso, uma questão de princípios. Se Trump não for processado, o Congresso estará consagrando um perigoso precedente: daqui em diante, os presidentes ficariam autorizados a usar o poder do cargo para atentar contra a alternância de governo. Nessa hipótese, a lei do impeachment se converteria em letra morta.
De Trump a Wilson Witzel. O assassinato de Ágatha Félix, a quinta criança morta por “balas perdidas” disparadas por policiais em favelas do Rio, é a prova definitiva de que o governador representa uma ameaça à vida dos cidadãos. Sob o estímulo explícito de Witzel, policiais operam na “outra cidade” como se estivessem em teatros de guerra, em terra estrangeira, atirando antes de perguntar e escondendo seus crimes no álibi mentiroso do confronto.
O governador cumpriu sua promessa de campanha, rebaixando a polícia ao estatuto de esquadrão da morte. Seguindo a ilegal “lei do abate”, as polícias fluminenses são responsáveis por 40% do total de homicídios que ocorrem na cidade do Rio. A Assembleia Legislativa tem a obrigação de abrir processo de impeachment contra Witzel, em nome do bem maior, que é a vida. Não fazê-lo é conferir à polícia o direito de matar — desde que os assassinatos fiquem circunscritos às favelas.
Fonte: “O Globo”, 7/10/2019