O Brasil seguiu o exemplo da União Europeia (UE) – que instaurou em maio medidas duras de proteção a informações privadas – e aprovou no Senado sua Lei geral de Proteção de Dados Pessoais.
Ambas as leis decorrem da descoberta de como as gigantes digitais usam informações dos usuários. Ganharam força com o escândalo Cambridge Analytica, a empresa britânica que trabalhou em prol de Donald Trump e Brexit – e deixou o mundo assustado com o poder de Facebook, Google e companhia.
Evidente que devemos aplaudir qualquer iniciativa que proteja a privacidade. É ingenuidade, contudo, acreditar que a aprovação de leis resolverá a questão. Elas terão, ao contrário, efeitos que podem até ampliar o poder das empresas que buscam disciplinar.
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Bases de dados colossais são usadas para fins políticos nos Estados Unidos pelo menos desde a eleição de George W. Bush. Continuarão a ser usadas. Leis europeias, brasileiras, egípcias ou malaias têm um poder limitado diante de empresas sediadas no Vale do Silício.
Poder aplicar multas milionárias – o Facebook já terá de pagar a primeira na UE – é importante. Mas disciplinar o uso das informação envolve muito mais que sanções desse tipo.
Seria preciso dar ao usuário não só a propriedade sobre suas próprias informações, mas também a possibilidade de migrá-las entre redes sociais concorrentes, de modo a criar um mercado competitivo.
Nenhum legislador será capaz de fazer isso. Inovação cabe, por definição, a empresas inovadoras. É essencial, portanto, que as leis compreendam e mantenham o espírito de inovação inerente ao universo digital. Sem isso, terão consequências indesejadas.
A lei brasileira segue à risca os princípios da Regulação Geral de Proteção de Dados (GDPR), norma europeia que entrou em vigor no último dia 25 de maio. Diante da nova realidade, tanto Google quanto Facebook afirmaram que adequariam seus usuários do mundo todo à nova lei.
Não fizeram isso. Tanto que a sede de taxação do Facebook foi até transferida da Irlanda, para que a empresa pudesse criar duas classes de usuários, uma submetida à GDPR, a outra sujeita a um contrato mais permissivo. É provável que, graças à nova lei do Senado, os brasileiros sejam transferidos da segunda para a primeira classe.
Na medida em que isso garante maior proteção à privacidade, parece sem dúvida um avanço. Só que grandes empresas, como Google ou Facebook, se adaptam facilmente à nova realidade. Basta fazer o que todos fizeram no final de maio: obrigar o internauta que quiser continuar a usar os serviços a clicar “ok” em mais um contrato que não lerá.
É um contrato menos permissivo. Mas não impede, na essência, que as grandes empresas continuem a operar no modelo de negócios em que o usuário é um produto a ser vendido a anunciantes. Reduz em alguma medida o poder de vigilância, mas não quebra o monopólio das gigantes do Vale do Silício.
Facebook e Google perdem com essas leis, mas elas não representam ameaça estratégica a seus negócios. Têm, ao contrário, uma consequência indesejada que ampliará o domínio das gigantes digitais. Praticamente eliminam do mercado de dados e anúncios toda empresa pequena, incapaz de arcar com os custos de adaptação.
Para Google, Facebook, Apple ou Netflix, é simples obter o consentimento do usuário a um novo contrato. E para produtores de pequenos apps ou prestadores de serviços muitas vezes inovadores? Nada simples.
Logo depois do escândalo Cambridge Analytica, o Facebook expulsou de sua plataforma vários fornecedores de dados. É impossível a qualquer legislador imaginar que tipo de negócio poderia surgir das experiências desses desenvolvedores. Mas é razoável supor que, se algo puder um dia ameaçar o negócio do Facebook, virá daí.
O resultado indireto da legislação que protege a privacidade do usuário é a fossilização do mercado no estado atual. As gigantes digitais se adaptarão e sem dúvida manterão seu monopólio, sequer abalado pelos regulamentos impostos. Para os pequenos desenvolvedores e mercadores de dados que poderiam um dia ameaçá-las, o ambiente se tornou mais inóspito.
Outra deficiência evidente dessas leis é ignorar o maior agregador de dados: o próprio governo. Se existe um risco hipotético de um “capitalismo de vigilância” praticado por Google ou Facebook, o de um estado policial nada tem de imaginário. As revelações de Edward Snowden em 2013 demonstram como o meio digital tornou possível aos governos controlar informações de seus cidadãos.
Tanto do ponto de vista político (governos) quanto econômico (negócios), as novas leis de proteção à privacidade deixam a desejar. Como resumiu o veterano do Vale do Silício John Batelle: “A GDPR, embora bem-intencionada, em vez de limitar o alcance dos operadores mais poderosos no mundo dos dados, alcançou na verdade o efeito oposto”.
Fonte: “G1”, 13/07/2018